Recentemente foi noticiado que a Microsoft criou uma chip para computação quântica, mas a comunidade científica criticou bastante o anúncio e tem algumas dúvidas se de fato a Microsoft conseguiu fazer o que afirma. Mas independente disso, o que seriam Partículas de Majorana , Topologia Quântica , Topocondutor e ouros termos que aparecem associados com a noticia do deste chip? Estes termos são bastantes técnicos, e não fazem parte do vocabulário cotidiano (e talvez nem no vocabulário de muitos graduados em ciências) mas vamos tentar apresentar uma explicação simplificada de uma forma que talvez seja compreensível para os não especialistas, em especial no significado do termo "Topologia" neste contexto.
O termo Topologia é uma referência a uma área da matemática que estuda propriedades que não se alteram quando submetidos a transformações continuas, que são transformações que incluem esticar, dobrar, comprimir, torcer mas não incluem cortar e colar. Um exemplo bem curioso é que para a topologia uma rosquinha e uma xícara (ver figura 1) não são diferentes, pois ambos podem ser deformados continuamente (sem cortar e sem colar) da xícara para uma rosquinha e vice-versa. É importante ressaltar que para a topologia a propriedade que se mantém entre a xícara e a rosquinha é a existência de um buraco, e a forma geométrica dos objetos não são importantes ( e não tente tomar chá usando uma rosquinha).
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Figura 1 Uma rosquinha e uma xícara são topologicamente equivalentes. Fonte |
No caso da Topologia aplicada na Computação Quântica existe um interesse especial na chamada Teoria dos Nós (ou mais especificamente nos chamados Braid Groups ). Na figura 2 (original em [1]) apresentamos um exemplo do que estuda a Teoria dos Nós. As duas primeiras figuras são equivalentes mas a terceira figura é diferente das outras duas. A segunda figura pode ser transformada na primeira com uma transformação contínua , sem necessidade de realizar cortes ou colagem para obter a primeira figura (basta distorcer a parte superior). No caso da terceira, para obter a primeira precisamos fazer um corte para desfazer o nó e depois colar as pontas para obter a primeira figura.
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Figura 2. As duas figuras da esquerda são equivalentes, mas a terceira figura é diferente das outras duas. Fonte [1] |
O termo
Braid em português significa trança, e faz referência a um conjunto de linhas que estão entrelaçadas, formando algo semelhante a uma trança (ver figura 3, adaptado de
https://mathworld.wolfram.com/Braid.html ). Ressaltamos que no contexto de aplicação que estamos apresentando, as linhas não representam uma corda, mas o que denominamos linhas de mundo, assim na figura 3 e 5, a direção vertical representa o eixo do tempo (aumenta da parte inferior para a parte superior) e a direção horizontal a posição no espaço (na figura 4 e 6 a horizontal é o tempo e a vertical o espaço), de forma que são tranças no espaço-tempo. (Caso não tenha estudado física, uma linha de mundo seria algo como o gráfico da posição pelo tempo, mas com algumas restrições importantes caso a linha de mundo seja de uma partícula com massa ou sem massa.)
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Figura 3. Um trançado de fios(fonte Wolfram) |
Diferentes tipos de tranças podem ser construídas, realizando por exemplo trocas entre os fios (na verdade a troca de posição das particulas). Na figura 4 ilustramos este processo, considerando uma rotação no sentido anti-horário e outro no sentido horário de duas partículas. Notemos que a troca de posição ocorre no plano (na figura marcado como sentido horário e sentido anti-horário) e as tranças estão representadas no espaço-tempo. Note que dependendo do sentido de rotação as tranças são diferentes.
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Figura 4. Formação da trança, com troca de partículas no sentido horário e no sentido anti-horário. Fonte [1]. |
O ponto importante a ser ressaltado é que uma vez formado as tranças, as mesmas não são modificadas com transformações contínuas, as modificações sendo possíveis apenas com cortes (ver o exemplo na figura 2). Importante novamente ressaltar que a aparência da trança não importa. Na figura 5 apresentamos duas tranças que possuem aparências distintas, mas do ponto de vista topológico são iguais.
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Figura 5. Tranças consideradas iguais (fonte AxelBoldt ) |
Em 1997, Alexei Kitaev, apresentou um artigo na qual fazia a proposta de que este tipo de tranças poderia servir para a implementação de computadores quânticos, e inicialmente a proposta foi recebida com algum ceticismo (o físico Nick Bonesteel lembra que "A primeira vez que li sobre o assunto dei risadas" [2] ). No entanto, muitos grupos começaram a estudar o tema com mais cuidado, principalmente porque o mesmo poderia ser estudado usando algumas técnicas conhecidas e principalmente devido a possibilidade do sistema ser mais resistente a ruídos. A figura 6, ilustra a idéia de que um ruído externo pode modificar a forma de uma das trajetórias mas não modifica a (topologia da) trança, e como a informação está contida na trança o ruído não afeta o resultado.
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Figura 6. Um ruído externo não modifica a trança (adaptado de Topological Quantum, S.H. Simmon, Oxford Press 2023) |
A descrição acima é bastante simplificada, mas apresenta a essência do que seria um Computador Quântico Topológico e a sua vantagem na robustez contra ruído. Na figura 7, temos uma representação de uma porta lógica (uma porta CNOT - Controlled-NOT, caso não conheça portas lógicas, não se preocupe, a figura apenas ilustra como opera a porta usando tranças), lembrando que o eixo do tempo está na horizontal.
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Figura 7. Representação da costrução de uma porta lógica (CNOT) na computação quântica topológica (fonte [1]) |
Uma programação usando tranças, corresponde a construir tranças especíicas (como o da figura 7) para cada situação particular. O mais importante é que por serem propriedades topológicas, estas tranças mesmo que modificadas com transformações continuas (figura 6), continuam realizando as mesmas simulações. Não são 100% imunes a ruidos, mas dependendo das configurações as influências dos ruídos são muito menores do que os existentes em um computador quântico utilizando outras técnicas (armadilhas de íons, elementos supercondutores).
Mas existem algumas dificuldades importantes: o sistema funciona para o caso em duas dimensões (espaciais) e as partículas utilizadas precisam possuir propriedades bem específicas. Por que em duas dimensões? A construção das tranças pode ser imaginado como um troca de posição entre as particulas, e na mecânica quântica sabemos que ao trocarmos a posição de duas partículas, podemos ter duas situações: o sinal da função de onda não se altera ou se altera. No primeiro caso dizemos que as partículas são bósons (exemplo é o fóton) e no segundo caso dizemos que as partículas são férmions (exemplo é o elétron) e neste caso não é possível utilizarmos as tranças para a construção de computadores quânticos. Dizemos que a fase altera de +1 para bósons e de -1 para férmions. Mas em duas dimensões, a situação é diferente, podemos obter qualquer valor entre +1 e -1. Este tipo de partículas são denominada anyons (não confundir com ânion , que é um íon de carga negativa) que corresponde a junção da palavra ANY (qualquer em inglês, indicando qualquer fase entre +1 e -1) e o afixo ON que é utilizado comumente para indicar partícula. E não pode ser qualquer anyon, mas o que denominamos anyons não-abelianos. O termo não-abeliano indica que a ordem de duas (ou mais) transformações realizadas nos anyons são importantes (quando a ordem não é importante dizemos que a transformação é abeliana). E justamente esta propriedade de ser não-abeliano, permite produzir tranças (braids) que corresponde a diferentes informações.
A construção de materiais de duas dimensões não é o principal o problema [3], mas a produção do tipo de anyon necessário para realizar a computação. No caso do chip da Microsoft, o que se propõe é a utilização de quase-partículas [4], denominada Modo Zero de Majorana (Majorana Zero Mode [5]), que é um tipo específico de anyon não abeliano. O termo Majorana faz referência a um tipo de partícula elementar proposta por Etore Majorana em 1937, e seria uma partícula (mais precisamente um férmion) que seria a sua própria anti-partícula. Normalmente isto não ocorre, por exemplo o elétron que é um férmion, tem como sua anti-partícula o pósitron que é diferente do elétron. Ressaltamos que no caso do chip da Microsoft, não é uma partícula fundamental como a proposta por Majorana, mas sim uma quase partícula de Majorana e não sendo um férmion mas um anyon. O termo Majorana é devido a semelhança na estrutura matemática utilizada para descrever a partícula de Majorana e a quase partícula Modo Zero de Majorana.
Para a utilização da computação topológica, é necessário produzir estas quase-partículas de Majorana, sendo que devem ser produzidas em pares (uma como partícula e outra a anti-partícula). Estes conjuntos de anyons sendo usados para produzir as tranças.
É justamente na suposta detecção da quase-partícula de Majorana, que a está a grande dúvida sobre o anuncio da Microsoft [6,7]. Outros grupos já haviam reportado a detecção desta quase-partícula, e em 2021 Sergey Frolov, comentou [8] a respeito de possíveis detecções da quase-partícula de Majorana que "(...) os pesquisadores estão escolhendo (os dados) a dedo — focando em dados que concordam com a teoria de Majorana e deixando de lado aqueles que não concordam." e que é comum "(...) o viés de seleção assumir o controle na pesquisa experimental orientada por hipóteses. Os "melhores" dados são frequentemente considerados aqueles que se encaixam na teoria. Então, desvios são muito facilmente
considerados como erro experimental ou humano que podem, portanto, ser descartados."
Se é este o caso do anúncio da Microsoft, ainda é cedo para afirmar. O grupo da Microsoft, fez uma apresentação sobre o tema recentemente, mas para muitos não foram apresentados dados convincentes.
O físico Eun-Ah Kim da Universidade Cornell em Nova York, afirmou que não estava claro se as medições provavam que eles funcionavam, apesar de Chetan Nayak (um dos autores do trabalho da Microsoft) afirmar que essas medições correspondem à modelagem teórica do dispositivo de sua equipe e que tem confiança no desempenho do dispositivo [6].
A comunidade científica ainda aguarda mais dados que confirmem de forma robusta que o chip anunciado realmente funciona. Steve Simon, da Universidade de Oxford, é otimista e afirma que [7] "Pode ser que o protocolo deles não seja tão confiável, mas isso não significa que eles não tenham chegado ao lugar certo de qualquer maneira."
Então, por enquanto é aguardar por novas evidências.
Notas
[2] “I laughed when I first read it,” recalls Nick Bonesteel, a theoretical physicist at Florida State University in Tallahassee
, em Quantum computation: The dreamweaver's abacus , Venema, L. Quantum computation: The dreamweaver's abacus. Nature 452, 803–805 (2008). https://doi.org/10.1038/452803a
[3] Um sistema bidimensional pode ser obtido confinando um gás de elétrons na interface de dois semicondutores, sendo que os elétrons tem seus movimentos contidos nesta interface, em baixas temperaturas e um campo magnético transversal intenso.
[4] Quase-partículas são o que denominamos excitações coletivas. Um exemplo ilustrativo é a OLA em um estádio de futebol. O movimento coordenado dos torcedores, passa a impressão de uma onda em movimento, sendo que os torcedores não se deslocam da sua posição. Veja a figura a seguir, que foi utilizado no texto a respeito da
luz sólida.
[8]No original, "I think that researchers are cherry- picking — focusing on data that agree with
Nature 592, 350-352 (2021).
