Em 1935, Einstein, Podolsky e Rosen publicaram o artigo (conhecido como artigo EPR) [1] no qual argumentam que a mecânica quântica não seria uma teoria completa. Apesar de Niels Bohr ter publicado no mesmo ano uma resposta ao artigo EPR, a física teve que esperar cerca de 30 anos para que fosse possível apresentar uma resposta consistente e que pudesse ser verificada experimentalmente. E isto foi possível, graças ao trabalho de John Bell que publicou um artigo em 1964 [2], no qual apresentou o que hoje denominamos teorema de Bell. A desigualdade de Bell é uma consequência deste teorema. E o que seria esta desigualdade de Bell?
Antes de introduzir a desigualdade de Bell (ou uma das desigualdades), vamos apresentar brevemente o argumento apresentado no artigo EPR, usando uma formulação devido a Ya. Aharanov e D. Bohm, que utiliza um sistema de spin de duas partículas. O spin é uma propriedade quântica que não tem sua contrapartida na física clássica, e quando uma partícula com spin 1/2 é medido possui apenas duas possibilidades de resultado, usualmente representado como +1 e -1. E como sabemos? O spin do elétron quando na presença de um campo magnético, é desviado da sua trajetória e este desvio depende do valor do spin. O resultado deste experimento é de que apenas dois resultados são possíveis, e isto independente de como o campo magnético do aparelho esteja orientado. Esquematicamente apresentamos este experimento (conhecido como o experimento de Stern Gerlach, de um artigo publicado em 1922) na figura 1.
Figura 1. Representação esquemática do experimento de Stern Gerlach. By Tatoute - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34095239 |
Utilizando este sistema de dois estados, podemos construir um estado emaranhado de duas partículas, que representamos como
$\frac{1}{\sqrt{2}} \left(\Psi_{(+)} \Phi_{(-)}- \Psi_{(-)}\Phi_{(+)} \right) $
e não se assuste com a equação. Apenas passamos para uma forma de equação a representação que utilizamos anteriormente, que apresentamos novamente na figura 2 [3].
Figura 2. Representação esquemática do estado emaranhado. |
De forma esquemática, o procedimento seria o seguinte. Um sistema emaranhado de duas partículas é produzido, e cada par é enviado para duas pessoas, que mantendo a tradição da física, serão a Alice e o Bob. Este par é produzido de tal forma que se uma das partículas tem spin +1 e outra terá spin -1 (considerando uma mesma direção de orientação para medir o spin de ambas as partículas). Alice tem a liberdade de escolher as direções para realizar a medida do spin da sua partícula, e igualmente Bob tem a liberdade de fazer suas escolhas de direções para a medida do spin na sua partícula. As escolhas das direções sendo realizadas aleatoriamente e de tal forma que não seja possível ocorrer uma transmissão de sinal entre Alice e Bob que possam influenciar os resultados, isto é, Alice faz suas medidas de forma independente de Bob e vice-versa. Ambos recebem uma grande quantidade de pares e vão fazendo suas medidas e coletando os resultados. Por ser um sistema de dois estados, os possíveis resultados das medidas podem ser representados como +1, e -1, independente da direção escolhida para fazer a medidas. Alice faz uma tabela com os resultados obtidos em cada uma das direções escolhidas e Bob faz a mesma coisa. A partir destes dados, é possível montar diferentes relações (as chamadas desigualdades de Bell) e comparar o resultado obtido com a previsão da mecânica quântica.
Para a construção da desigualdade de Bell, assumimos que a medida de Alice não influencia e medida de Bob (dizemos que é um critério de localidade) e que cada partícula tem um spin definido, não sendo resultado do processo de medida (dizemos que é uma visão realista do mundo). Estas duas hipóteses, formam a visão de uma natureza localmente realista [4]
Para obter a desigualdade de Bell, vamos considerar que no nosso experimento, Alice e Bob podem realizar medidas em três direções, que representamos pelas letras a,b,c. E a condição que temos que considerar é que se para uma partícula a=+1 para outra terá que ser a=-1 e vice-versa, e igualmente para as outras duas direções. Assim, vamos inicialmente considerar que a partícula 1 tenha (a,b,c)=(+1,+1,+1), então necessariamente a partícula 2 deve ter (a,b,c)=(-1,-1,-1). Se consideramos todas as possíveis combinações de sinais, devemos ter um total de 8 pares, sempre considerando que a mesma componente do spin, nas duas partículas devem ser opostas. A tabela 1, ilustra estas oito combinações possíveis [5]
Tabela 1. Valores das componentes do spin para as duas partículas. Em destaque o caso com a=+1 e c=-1, respectivamente para as partículas 1 e 2. |
Na primeira coluna indicamos a frequência que estas combinações aparecem no experimento. Os valores das frequências obtidas em cada situação, não é importante, mas precisamos lembrar que são todos números positivos.
Vamos imaginar que Alice faz uma medida na direção a, obtendo a=+1 e Bob faz a sua medida na direção c, obtendo c=-1. Neste caso, ou a situação é a descrita por $n1$ ou $n3$, isto é a frequência que Alice obtém a=+1 e Bob obtém c=-1, é dado pela soma $n1+n3$ (ver o destaque em vermelho na tabela 1). Outra possibilidade é Alice medir na direção b e obter b=-1 e Bob medir na direção c e obter c=-1. Olhando na tabela, esta situação corresponde a $n3$ e $n7$, portanto a frequência de resultados com (Alice) b=-1 e (Bob) c=-1 será $n3+n7$. E podemos continuar com diversas outras combinações de resultados. Vamos começar com uma igualdade
$n1+n3= n1+ n3$
e como as frequências são positivas, podemos construir a desigualdade
$n1+n3\le n1+n2+n3+ n7$
Notemos que $n1+n3$ é a frequência que ocorre resultado de partícula 1 com a=+1 e partícula 2 com c=-1 e vamos representar como $p(a+,c-)$ , e $n3+n7$ a frequência que ocorre o resultado da partícula 1 ter b=-1 e a partícula 2 ter c=-1 e que vamos representar como $p(b-,c-)$ , como já vimos antes. O termo $n1+n2$, olhando a tabela, corresponde a ter para a partícula 1 a=+1 e para a partícula 2 b=-1, que vamos representar como $p(a+, b-)$, logo podemos escrever
$p(a+, c-)\le p(b-,c-)+p(a+,b-)$
obtendo uma desigualdade, que pode ser comparada com a previsão da mecânica quântica e/ou testada experimentalmente. Como podemos trabalhar com diferentes escolhas de pares de medidas, podemos obter outras desigualdades, portanto temos todo um conjunto de desigualdades de Bell. É importante ressaltar que para obter este resultado, não utilizamos a mecânica quântica (exceto o spin), e assumimos que a correlação entre as componentes do spin é uma propriedade da partícula e não o resultado da medida. Outra condição é de que a correlação é produzida localmente. Isto é a desigualdade de Bell expressa a existência de uma propriedade real das partículas, independente da medida e que as interações são locais. (Dizemos que a desigualdade de Bell expressa uma visão de mundo que é localmente realista).
Experimentos para testar a desigualdade de Bell, tem sido realizados desde os anos de 1970 [7], principalmente após a publicação de uma versão da desigualdade de Bell (conhecida como desigualdade de CHSH [8], que se mostrou mais adequado para implementação experimental) e em todos os experimentos a desigualdade de Bell é violada! Isto implica que das duas hipóteses (realismo e localidade) utilizadas para a obtenção da desigualdade de Bell, uma delas está errada ou ambas estão erradas. Não exclui necessariamente a existência de variáveis ocultas, mas torna a sua existência bem mais restrita.
Figura 3. John Bell olhando a desigualdade de CHSH, que preve o valor de 2 e o valor obtido pela mecânica quântica $2\sqrt{2}$ que viola a desigualdade. (http://cds.cern.ch/record/969981 ) |
Podemos dizer que o teorema de Bell está completamente demonstrado? A rigor não, pois existem possíveis brechas nos experimentos, apesar de serem brechas cada vez mais restritas [7]. Talvez fechar todas as brechas, não seja uma tarefa possível. No entanto, é interessante que um assunto que aparentemente não teria nenhuma aplicação imediata (o teorema de Bell e suas desigualdades), pode ser fundamental para a construção de um sistema de criptografia quântica [8]. Talvez a chamada segunda revolução quântica torne o que era uma área negligenciada pela física (a área de fundamentos da mecânica quântica) em uma área de intensa pesquisa, quem sabe antes do esperado ano da física quântica em 2025.
[1] Einstein, A., Podolsky, B. & Rosen, N. Can quantum-mechanical description of physicical reality be considered complete? Phys. Rev. 47, 777 (1935).
[2] J. S. Bell, “On the Einstein-Podolsky-Rosen Paradox,” Physics 1, 195 (1964) ou em J. S. Bell, “Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics,” (Cambridge University Press, Cambridge, 2004)
[3] O fator de $1/\sqrt{2}$ e o fato de utilizarmos uma subtração e não uma soma (como na representação da figura 2), não é importante no momento.
[4] B. d' Espagnat, The Quantum Theory and Reality, Scientific American, novembro de 1979.
[5] Ver por exemplo no livro do J.J. Sakurai Mecânica Quântica Moderna. A obtenção da desigualdade de Bell, como realizado em [2] pode ser lido de forma bem didática no livro de D. Griffiths, Mecânica Quântica.