fevereiro 15, 2024

O termômetro

     O termômetro é o aparelho utilizado para medir a grandeza temperatura, e o seu papel no desenvolvimento da termodinâmica, não pode ser desprezado. Mas qual a origem do termômetro?

      O conceito de  objetos quente ou frio, tem origem muito anterior ao desenvolvimento do termômetro e da noção de temperatura. Que o ar e a água expandiam ao serem aquecidos,  eram conhecidos desde a Grécia antiga,  um exemplo sendo a máquina a vapor de Heron de Alexandria (cerca de 60 AC) ou um termoscópio rudimentar de Filão de Bizâncio (280-220 AC). No entanto, não tinham o propósito de medir temperaturas. 

Figura 1. A máquina de Heron de Alexandria (Fonte)


    Talvez para surpresa de muitas pessoas, o termo temperatura não foi inicialmente elaborado para alguma aplicação em física ou  química. Cláudio Galeno (cerca  de 129 a 227 DC) , filósofo e médico grego, baseava seus tratamentos nas quatro qualidades propostas por Aristóteles calor, frio, seco e umidade. A combinação/mistura destas quatro qualidades, definiria segundo Galeno, as diferenças entre as pessoas. O termo mistura em latim é escrito "tempera", que dá origem ao termo temperatura.  Galeno propunha e existência de uma temperatura neutra, que não seria nem quente nem frio, e que poderia ser obtido com uma mistura igual de água fervendo e gelo, propondo o que seria o primeiro padrão de medida da temperatura, e a partir desta temperatura neutra, Galeno apresentou 4 graus de calor e 4 graus de frio [1]. Mas para a medida da temperatura, não existia nenhum aparelho,  de forma que "quente" ou "frio", eram grandezas subjetivas. 

    Não se sabe exatamente quem inventou ou usou pela primeira vez um termômetro (no sentido de medir temperatura com alguma escala). Existem algumas indicações apontando diferentes autores em diferentes épocas, sendo comum os seguintes autores : Santorio Santorii (Sanctorius) (1561- 1636), que tem o primeiro registro escrito (1611) sobre o termômetro; Galileu Galilei,  apesar de não termos registros escritos, existem algumas indicações que teria inventado um termômetro antes de Santorio, talvez no período de 1592 a 1603;  Robert Fludd (1574- 1637) e  Cornelius Drebbel 1(572-1633) são outros prováveis inventores do termômetro. Não existem registros que eles tivessem conhecimento do trabalho dos outros, de forma que com grande possibilidade, foram desenvolvidos de maneira independente. Lembrando que no período, a comunicação era bem demorada. Mas o termômetro, como conhecemos atualmente, com líquido ou gás em um recipiente fechado, foi desenvolvido em 1641, por Ferdinando II, Grão Duque da Toscana (1610-1670). Os termômetros anteriores eram construídos utilizado recipientes abertos.


Figura 2. Termômetro de Fludd, 1626. (Fonte )

    Uma vez tendo sido construído o termômetro, o próximo importante passo foi a de definir qual a melhor substância para ser utilizado, e qual o melhor padrão a ser utilizado para calibrar um termômetro. Alguns padrões propostos: temperatura dentro de um porão profundo,  temperatura da grutas sob o  Observatório de Paris, cera derretida, temperatura do corpo humano, temperatura do sangue, temperatura da manteiga derretida , água fervendo , mistura de água gelo e sal, dia mais quente do verão e outros [2]. Entre as substâncias, as preferências eram água, vinho, ar e mercúrio. 

    Daniel Gabriel Fahrenheit (1686-1736), foi o responsável por estabelecer a utilização do mercúrio como a substância ideal para os termômetros, e utilizou como padrão a temperatura do corpo  humano e a ponto de congelamento de uma mistura em partes iguais de água, gelo e sal amôniaco, em 96⁰ F e 0 ⁰ F, respectivamente. Note que Fahrenheit NÃO escolheu como pontos fixos a temperatura de ebulição e a temperatura de congelamento da água, em 212 ⁰F e 32⁰F, respectivamente [3]. Os termômetros construídos por Fahrenheit e com o padrão escolhido, tornaram os termômetros confiáveis, com diferentes aparelhos resultando em medidas iguais nas mesmas condições,  o que antes não era possível (o termômetro de vinho (alcool) , que era o mais comum, resultava em medidas diferentes nas mesmas situações). Os valores utilizados por Fahrenheit, possivelmente tem origem em uma escolha para evitar o uso números decimais "Fahrenheit prosseguiu dizendo (....) achava que a escala de Roemer com suas frações era ao mesmo tempo inconveniente e deselegante; então, em vez de 22 1/2 ⁰ dividido em quartos, ou seja, 90, ele decidiu considerar 96° como calor do sangue" [4].

    A escala Celsius que utilizamos no Brasil, foi desenvolvida por Andres Celsius, que utilizou como ponto fixo o ponto  de ebulição da água e o ponto de congelamento em 0⁰ C e 100⁰ C, respectivamente. Na escala original, os pontos fixos de Celsius são invertidos em relação ao que utilizamos atualmente. 

    Uma definição mais precisa da temperatura, somente foi desenvolvida com a consolidação da termodinâmica, e sendo expressa pela Lei Zero da Termodinâmica (já estavam consolidadas as chamadas Primeira e Segunda Lei da Termodinâmica), e a unidade de temperatura sendo o kelvin, simbolizado pela letra K. Note que não é utilizado o símbolo ⁰ de grau na escala kelvin. Atualmente é utilizado como ponto fixo o chamado ponto triplo da água, sendo atribuído o valor de 273.16 K. A escala kelvin é considerada temperatura absoluta, e a  temperatura de 0 K é a menor temperatura possível em um sistema físico [5]. 


Notas e Referências

[1] T J Quinn and J P Compton 1975, The Foundations of Thermometry  Rep. Prog. Phys. 38 151; F. Sherwood Taylor M.A. Ph.D. , 1942,  The origin of the thermometer, Annals of Science, 5:2, 129-156

[2] H. Chang 2007, Inventing Temperature, Oxford Univerity Press.

[3] A escolha do ponto de ebulição da água, não foi simples, até porque a definição precisa de ponto de ebulição não era bem estabelecida. Termos como ebulição branda, ebulição agitada, ebulição violenta eram comuns de serem utilizadas, além de que a utilização de um recipiente de vidro ou de metal, resultava em valores diferentes. Uma discussão interessante sobre estas dificuldades pode ser lida na referência [2].

[4]O trecho completo "Fahrenheit went on to say, in his letter to  Boerhaave, that in 1717 he felt Roemer's scale with its fractions to be both inconvenient and inelegant ; so instead of 22 1/2 ⁰  divided into quarters, that is, 90, he decided to take 96° as blood heat.  Retaining the same zero, the melting point of ice became 32°, instead of 7 1/2 ⁰  divided into quarters,  or 30. This scale he continued to use and was using at the time the letter was written (that is,  in 1729) ; he added that he had been confirmed in his choice because he found it to agree, by pure coincidence, with the scale marked on the thermometer hanging in the Paris Observatory.  " Fonte: Friend, J. The Origin of Fahrenheit's Thermometric Scale. Nature 139, 395–398 (1937). https://doi.org/10.1038/139395a0

[5] Veja por exemplo https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=sobre-a-determinacao-do-zero-absoluto . Uma curiosidade  é que para sistemas fora do equilíbrio ou em equilíbrio meta estável, é possível atribuir uma temperatura negativa, mas que  não representa uma temperatura menor que 0 K.  Em um laser, o processo chamado inversão de população, corresponde a um sistema com temperatura negativa, que a rigor é uma temperatura que é obtida após a temperatura +infinito. 

fevereiro 13, 2024

Gasto de Energia de um Carro Elétrico

    O carro elétrico tem se tornado cada vez mais  uma opção competitiva, em relação aos carros de combustão interna. Existem vários motivos para este crescimento no interesse e oferta destes veículos. Mas um tema que sempre chama a atenção é sobre o seu consumo/autonomia, comparado com os automóveis de combustão interna. Um dado interessante é que no início do século XX, os carros elétricos circulavam em alguns países, de forma que não é uma novidade deste século (ver por exemplo  no link ). 

    Como podemos comparar o consumo de um carro elétrico com um carro de combustão interna?

    Um item importante é como a mesma quantidade de energia é convertida em energia mecânica. No caso de um carro com combustão interna, a eficiência é cerca de 30% e de um carro elétrico, cerca de  85%, de forma que um carro elétrico utiliza de forma mais eficiente a energia inicial. De forma que em relação a eficiência, o carro elétrico é melhor que o carro de combustão interna. 
    
    Na figura 1, apresentamos os diferentes fatores que consomem a energia em um carro elétrico. Notemos que comparado com o carro de combustão interna, o percentual perdido devido ao atrito de rolamento e o arrasto é maior no carro elétrico, como consequência da maior eficiência do motor elétrico.

      A densidade de energia da gasolina é cerca de 32 MJ/ L e de uma bateria usual é inferior a 1MJ/ kg (dependendo da bateria, este valor é bem menor, mas nos casos de baterias de lítio que são utilizados em carros elétricos, o valor é bem próximo de 1 MJ/kg).  Para realizarmos uma comparação, precisamos transformar na mesma unidade. Como 1 litro de gasolina tem massa cerca de 0,750 kg, temos que 32 MJ/L é cerca de  42 MJ/kg  o que torna aparentemente a utilização de uma bateria não muito adequada para um carro. Mesmo considerando as eficiências em cada caso, no caso da gasolina cerca de 30% e no caso do carro elétrico cerca de 80%,  ou seja cerca de 13MJ/kg  para a gasolina e  0,8 MJ/kg para um carro movido a bateria. Será que um carro elétrico então não é vantajoso do ponto de vista de custos? Será que a grande (e importante) vantagem seria a redução na emissão de poluentes? Vamos analisar com um pouco mais detalhes, lembrando que apesar da densidade de energia ser um parâmetro importante, existem outras condições que precisamos considerar.

    Vamos inicialmente comparar os desempenhos dos carros protótipos vencedores da Shell Marathon 2023 no Brasl 

    Na categoria de combustão interna a equipe vencedora foi Drop Team do IFRS Erechim, com o melhor resultado de  715.7 km/l

    Na categoria de carro elétrico a equipe vencedora foi   ARMAC Milhagem da  UFMG, com o melhor resultado de  367.37 km/kWh

    Mas como podemos comparar estes resultados? As unidades são diferentes, uma está em quilômetros por  litro e a outra em quilômetros por kilowatts-hora.

  
    No caso de um carro de combustão interna, o consumo é dado por quilômetro por litro  e do carro elétrico em quilômetro por kilowatt-hora . Então para efetuarmos alguma comparação, precisamos inicialmente   converter km por litro para km por kWh (ou o inverso).  A primeira conversão  é de joule para kWh. Lembrando que 1W corresponde a 1J/s, temos que 1 Wh= 1 (J/s) 3600 s  pois uma hora possui 3600 s,   assim obtemos a relação  1kWh= 3,6 M J.  Como 1 litro de gasolina corresponde a 32 MJ de energia, obtermos a relação

$ \frac{km}{L}=\frac{km}{32 MJ}= \frac{3,6}{32}\frac{km}{  kWh}$

esta relação nos permite transformar o consumo de um carro de combustão interna que costuma ser expresso em quilômetro por litro para quilômetro por kilowatt-hora.

    Assim, no caso dos vencedores da Shell Marathon 2023 no Brasil temos no caso do protótipo de combustão interna cerca de 81 km/KWh que é bem menor que o obtido pelo carro elétrico, que foi  367.37 km/kWh. O protótipo elétrico teve um desempenho cerca de 4,5 vezes melhor que o protótipo de combustão interna.

    Para carros comerciais no Brasil, podemos comparar os resultados obtidos pelo INMETRO  no Programa de Brasileiro de Etiquetagem Veicular. Na tabela do INMETRO, podemos obter a informação sobre o consumo de energia por quilômetro em  MJ/km [1]. Para carros de combustão interna os valores são maiores do que os carros elétricos, lembrando que agora estamos considerando quanto de energia é utilizado por quilômetro, que é o inverso do que foi apresentado no parágrafo anterior, além de utilizar como unidade de energia o joule e não kwh.   Na tabela do INMETRO, para carros classificados como compactos o valor de consumo de energia varia entre 0,58 MJ/km  e 0,59 MJ/km  (somente dois veículos) e no caso de carros com combustão interna de 1,57 MJ/km  até 1,99 MJ/km  (mais de 40 veículos). O desempenho neste caso na melhor situação foi 2,7 vezes maior do carro elétrico do que o carro de combustão interna. E para carros médio variou de 1,09 MJ/km  até 2,29 MJ/km  para combustão interna e 0,42 MJ/km até 0,66 MJ/km  para carros elétricos, e o despenho na melhor situação foi cerca de 1,66 vezes melhor do carro elétrico para o de combustão interna.   No Brasil, o INMETRO utiliza para o cálculo do consumo de combustível a NBR 7024 a qual "estabelece o método para a medição do consumo de combustível de veículos rodoviá­rios automotores leves com motores de combustão interna, por meio de ciclos de condução " (ver em NBR 7024 ) que sejam próximas de uma situação de condução típica, tanto da área urbana como na estrada. Esta norma é baseada em uma norma americana. Existe uma outra norma a WLTP - Worldwide Harmonised Light Vehicle Test Procedure ou Procedimento Mundial Padronizado de Teste de Veículos Leves, ver por exemplo  O automóvel BMW i3 elétrico viola as leis da Termodinâmica?  publicado no CREF.  Os valores de consumo obtidos são diferentes, de forma que precisamos ter cuidado ao comparar apenas os valores nominais de uma norma com a outra, no caso dos dados do INMETRO, os valores são menores que os da WLTP . 

    Desta forma, os carros elétricos possuem do ponto de vista de consumo de energia, uma maior eficiência de gasto de energia por quilômetro em comparação com os veículos de combustão interna. Outros fatores também tornam o carro elétrico mais vantajoso, como o menor ruído, além do citado inicialmente da redução na emissão de poluentes, a utilização de processos regenerativos de energia o que torna o consumo de eletricidade melhor em situações de trânsito urbano). E a autonomia (distância percorrida com uma única carga das baterias) dos carros elétricos tem aumentado de forma consistente, e com a expansão na sua utilização , pontos de recarga devem se tornar mais comuns.  A massa elevada das baterias, pode a princípio ser uma grande desvantagem,  mas como o conjunto das baterias fica na parte inferior do carro, isto ajuda a melhorar a estabilidade do veículo. 


    Existem  questões relacionados com o custo das baterias e seu tempo de uso, além das questões relacionadas com a reciclagem e descarte das mesmas (ver por exemplo neste texto da  Science).  Outra questão que deve ser analisado com cuidado, é a chamada well to wheel efficiency, que de maneira  simplificada, estuda todo ciclo da produção de energia até a sua utilização pelo carro, considerando principalmente a emissão de gases que contribuem para o efeito estufa. Dependendo da matriz energética, a eficiência pode variar bastante. No caso do Brasil, com uma matriz fortemente baseada em hidrelétricas, a emissão de gases que contribuem com o efeito estufa é negligenciável, mas para países que possuem uma matriz baseada em carvão, a emissão pode ser muito alta. Uma outra questão importante é que em condições com temperaturas muito baixa ou muito alta, as baterias apresentam problemas. No caso do Brasil, não teríamos problemas com as baixas temperaturas, mas podemos ter com as altas temperaturas. 

 

   

     

    
 Notas
[1] Preste atenção que anteriormente utilizamos  km/kWh  que corresponde a distância/energia e na tabela da INMETRO é utilizado  MJ/km , que corresponde a energia/distância , e a unidade de energia utilizada pelo INMETRO é joule. Utilizando a relação   1kWh = 3,6  MJ, o protótipo de combustão interna do IFRS , corresponde a cerca de  0,044  MJ/km e protótipo da UFMG a cerca de 0,01 MJ/km.