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janeiro 03, 2024

A Pseudo Telepatia Quântica

   

Xu et al 




       O nome infeliz de pseudo telepatia quântica, descreve uma consequência bastante interessante da mecânica quântica, sendo ilustrada em uma situação de um jogo que permite um grupo vencer  sempre, se  utilizarmos a mecânica quântica, mas com regras da física clássica, não seria possível vencer sempre.

   Este jogo é o denominado Jogo do Quadrado Mágico (Quadrado Mágico de Mermin-Peres) , que utiliza um tabuleiro de três linhas e três colunas, tendo dois jogadores, digamos Antônio e Bruna  e um juiz , digamos Xavier. A dinâmica do jogo sendo a seguinte. Inicialmente Xavier escolhe qual linha Antônio  deve preencher e qual coluna Bruna deve preencher. Esta escolha é realizada de forma aleatória, e Antônio não sabe qual coluna Bruna via preencher e nem Bruna sabe qual linha Antônio vai preencher. O preenchimento das linhas e colunas devendo ser feita com o número 1  ou o número -1, com a condição de que o produto dos números da linha de Antônio seja sempre +1 e da coluna de Bruna seja sempre  -1. Isto significa que Antônio pode escolher os seguintes conjuntos (1,1,1), (1,-1,-1), (-1,1,-1), (-1,-1,1) e Bruna um dos conjuntos (1,1,-1), (1,-1,1), (-1,1,1) ,(-1,-1,-1). O jogo é uma disputa entre Antônio e Bruna contra Xavier. 

    E como é decidido o vencedor? Note que sempre vai existir um quadrado que será igual entre a linha escolhida por Antônio e a coluna escolhida por Bruna. Se o dígito neste quadrado for igual para Antônio e Bruna, os dois vencem, caso contrário Xavier vence a partida. Digamos que Xavier envie a informação linha 2 para Antonio e coluna 3 para Bruna. Na figura 1, indicamos a posição da linha e da coluna que devem ser preenchidas, com fundo branco e o quadrado comum em vermelho. É importante ressaltar que Antonio não sabe qual coluna Bruna vai preencher e Bruna  não sabe qual linha Antônio vai preencher.



Figura 1. No lado esquerdo um jogo que Antônio e Bruna são vencedores, no lado direito um jogo que Xavier é o vencedor. O # indica +1 para a escolha de Antônio  e -1 para escolha de Bruna. Lembre da regra do produto para as linhas e para as colunas 

    Digamos que Antônio escolhe os números  (1,1,1) , note que o produto é igual a +1 como exigido. Para preencher a sua linha e Bruna escolhe (1,1,-1) para a sua coluna, notando que o produto dos números é -1, como exigido pela regra. Neste caso Antônio e Bruna vencem, pois a intersecção da segunda  linha com a coluna três, é igual a 1  Mas se a escolha de Bruna fosse (-1,-1,-1)   quem venceria o jogo seria Xavier, porque na intersecção Antônia escolheu +1 e Bruna -1, logo são números diferentes.

    A regra permite que antes de começar o jogo, Antônio e Bruna podem conversar e decidir que estratégia seguir no jogo. Mas uma vez iniciado o jogo, Antônio e Bruna não podem mais trocar informações. Em um jogo normal (obedecendo a física clássica), é possível escolher uma estratégia na qual Antônio e Bruna vencem na maioria das vezes, mas não existe uma estratégia que permite Antônio e Bruna vencerem sempre. 

    Por exemplo, uma estratégia que Antônio e Bruna podem adotar  é preencher previamente a tabela com todas as possíveis combinações que resultem em uma vitória, isto é que o produto dos números da linha do Antônio seja +1 , o produto dos números da coluna de Bruna seja -1 e  o número no quadrado comum para a linha de Antonio e a coluna de Bruna tenham o mesmo número. O problema com esta estratégia é que sempre um dos quadrados estará em conflito. Um exemplo é apresentado na figura 2. Note que podemos trocar as ordens das colunas ou das linhas, de forma que o quadrado em conflito pode estar em qualquer lugar da tabela 3x3. Isto quer dizer que NÃO existe uma estratégia que garanta vitórias em 100% dos casos (é possível mostrar que no máximo é possível obter 8 vitórias em 9 jogos, o que não é muito ruim para Antônio e Bruna).



Figura 2. O quadrado vermelho tem que ser -1 para Antônio e +1 para Bruna.
    
    Isto quer dizer que classicamente, não é possível preencher o todos os quadrado com números +1 e -1 de tal forma que o produto em cada linha seja +1 e o produto em cada coluna seja -1. Desta forma não existe estratégia que permita vencer sempre o jogo.

    No entanto, se Antônio e Bruna utilizarem recursos da Mecânica Quântica,   podem vencer  sempre! Isto é possível produzindo um estado emaranhado de duas partículas, e enviando dois para  Antônio e dois para Bruna.

       Qual o procedimento a ser seguido? Quando Antônio recebe a informação de qual linha deve preencher, ele vai aplicar o operador correspondente da sua linha no seu par de partículas, e Bruna faz a mesma coisa utilizando o operador que estão na coluna informada por Xavier.  Após aplicar o respectivo operador nas seus pares de partículas, Antônio e Bruna realizam medidas no estado obtido, provocando o colapso da função de onda. Cada  um obtém dois números e o terceiro deve ser preenchido de acordo com a regra da paridade (para Antônio o produto tem que ser +1 e para Bruna tem que ser -1).  Por serem estados emaranhados, os resultados de Antônio e de Bruna estarão correlacionados e o quadrado em comum sempre terá o mesmo número! De forma que Antônio e Bruna sempre vencem! [1]


    Na prática, devido a existência de ruídos , o entrelaçamento pode ser perdido. Mas em situações em que seja possível controlar o ruído, o número de vitórias de Antônio e Bruna será sempre maior que o caso clássico. Este fato foi demostrado experimentalmente em 2022. Comparando o resultado clássico máximo de 8/9 (cerca de 88,89%) Xu et all, obtiveram  um percentual de cerca de 93,84% de vitórias para Antônio e Bruna, demonstrando que no caso quântico o percentual de vitórias é maior que o máximo permitido pela física clássica [2].  

    O Quadrado Mágico de Mermin-Perez, é mais do que uma curiosidade. Na verdade, inicialmente foi introduzida para discutir a questão da existência de variáveis escondidas na Mecânica Quântica , com uma extensão do Teorema de Bell. A verificação experimental  obtida por Xu et all, é um forte indício de que a nossa interpretação de que o Universo é realista, isto é, as suas propriedades existem independente de observarmos ou não, como defendia Einstein , Podolsky e Rosen (veja por exemplo em  Teorema de Bell e  Teletransporte Quântico ) não é compatível com a Mecânica Quântica.


Notas e Referências

Aqui nas notas, apresentamos alguns detalhes dos artigos, caso alguém queira mais detalhes. Mas o texto é independente destes detalhes, então para quem desejar, pode ignorar estas notas.

[1] Para quem tiver curiosidade, os operadores unitários são 
Fonte Brassard et all ou sua versão livre em Brassard

Os operadores $A_i$ são utilizados por Antônio e corresponde a linha $i$, e os $B_i$ são os utilizados por Bruna e correspondem a coluna $i$. E o estado inicial sendo 
o primeiro e o terceiro par sendo de Antônio e o segundo e o quarto de Bruna. Aqui o estado 0 representa+1 e  o estado 1 representa -1. No artigo é dado um exemplo de Xavier escolher a linha 2 para Antonio e a coluna 3 para Bruna, logo é calculado
Fonte  Brassard

que pode ser obtido após um longo e tedioso cálculo (só precisa realizar produto de matrizes e depois organizar os resultados).  Neste estado Antônio e Bruna realizam a medida para determinar seus bits clássicos, notemos que existem 8 possíveis resultados. Os dois primeiros quibts correspondem agora a de Antônio e o terceiro e o quarto a Bruna. Por exemplo, ao realizar a medida podemos obter o primeiro estado , no nosso caso seria (+1,+1) para Antônio e (+1,+1) para Bruna. Antônio completaria sua linha com +1 e Bruna com -1. Note que o quadrado comum tem o mesmo valor.Para todos os outros valores, sempre vai obter que o quadrado em comum tem o mesmo valor. Uma outra opção é a primeira lina e a primeira coluna, neste caso obtemos

Escolhendo a primeira linha e a primeira coluna.

 Note no primeiro caso Antonio obtém (+1,+1) e  Bruna (+1,+1) , no segundo caso Antônio obtém (+1,+1) e Bruna (+1,-1) e assim sucessivamente. O mais  importante é que o quadrado em comum sempre são iguais, e o quadrado restantes, cada um preenche com o número adequado para validar a sua paridade, 


[2] No artigo de Xu et al  (para acesso livre  ver em arxiv ) as matrizes o estado inicial são diferentes ao do proposto por Brassard , mas é um resultado que testa experimentalmente com bastante precisão, a validade da ideia da pseudo telepatia quântica. Eles utilizam o estado 
e como operadores 
Fonte Xu et all

Neste caso os operadores em cada linha comutam de dois a dois e o mesmo vale para as colunas. E o produto dos operadores em cada linha é igual ao operador unidade e  o produto dos operadores nas colunas é igual a menos a o operador unidade. Note que no quadrado em comum, Antôno e Bruna utilizam o mesmo operador. Sendo possível mostrar que neste caso temos 


indicando que no quadrado comum, os valores serão iguais.



outubro 06, 2022

Teletransporte Quântico

    O teletransporte quântico é uma das consequências  fascinantes  da física quântica, e  foi um dos temas que motivou o Prêmio Nobel de Física de 2022. Mas  o que seria o teletransporte quântico? Para quem conhece as séries e os filmes de Jornadas nas Estrelas, o nome teletransporte é bem conhecido, imortalizado na frase "Beam me up, Scotty", ou em uma versão livremente traduzida como "Dois para subir, Scotty" . Ao final da qual um objeto é teletransportado de um local a outro.  Mas seria o teletransporte quântico a mesma coisa?

    Vamos pelo começo! Para entender o significado do termo teletransporte quântico, precisamos entender alguns conceitos importantes da física quântica. Uma delas é os chamados estados emaranhados, explicado no texto  Estados Emaranhados Em Mecânica Quântica .  Estes estados foram propostos pela primeira vez, por Erwin Schroedinger, em um artigo que ele apresenta o famoso experimento mental do Gato de Schroedinger (para uma versão traduzida para o inglês, ver  aqui), no qual ele apresenta uma superposição de estados do Gato Morto e Gato Vivo, que existiria até o instante que alguém realizasse uma medida. 

    Einstein, Rosen e Podolsky  publicaram em 1935, um artigo (que pode ser acessado aqui ) onde utilizam a ideia dos estados emaranhados, para propor que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta.  Durante muitos anos, não foi possível responder de forma experimental se os argumentos de Einstein, Rosen e Podolsky seriam corretos ou não, de forma que a questão ficou por muitos anos esquecida, ou apenas como uma curiosidade. Mas nos finais dos anos de 1960, um grupo de físicos retomariam o tema e começaram a estudar com mais detalhes este assunto, em especial, os trabalhos de John Bell foram fundamentais para o ressurgimento do interesse sobre o assunto  (sobre  este assunto, uma leitura é o texto A Desiguldade de Bell   que foi publicado no blog).

    Caso não tenha ainda lido sobre o que são os estados emaranhados, vamos fazer uma rápida descrição. Imagine que você tenha dois dados (verde  e vermelho, como na figura 1), e ao jogar os dados , os números são sempre iguais em ambas as faces: se no primeiro dado aparece a face 6, no segundo também será 6 e assim para quaisquer outro número existente no dado: qualquer que seja a face que aparece no dado que foi jogado (digamos o verde) , no dado vermelho  a face resultante será a mesa. Estes dados na linguagem da mecânica quântica estão entrelaçados ou emaranhados. (Esta é uma construção simplificada, mas ajuda a entender o conceito do emaranhamento). 

Figura 1 Dados entrelaçados (adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Two_red_dice_01.svg )




    No teletransporte quântico, o que se faz  é preparar um par de dados emaranhados e enviar um dos pares para um local distante, e deixar ele guardado.  Nos experimentos, ao invés de dados, são utilizados por exemplo fótons, que são as partículas da luz. Fazendo a analogia com um dado, o fóton tem apenas "duas faces", isto é, podem resultar em "dois números", como as faces de uma moeda (cara ou coroa ou usualmente representados como  os  estados  0 e 1).  Um outro ingrediente importante para o nosso processo é a possibilidade de construir os estados de superposição, isto é, o um estado no qual o fóton está em uma combinação do estado 0 e do estado 1 (este é o famosos estado do gato de Schroedinger, que na descrição da física quântica está em um estado que é  a mistura (superposição) do gato vivo e o gato morto). 

Figura 2. Autor By Dhatfield - Own work, CC BY-SA 3.0, fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4279886


     O objetivo do teletransporte é fazer com que um fóton que esteja em um local, seja enviado para um outro local distante. Para ilustrar este processo, vamos imaginar dois laboratórios, um cuja responsável é a Ana e um outro  laboratório cujo responsável é a Bruna.  Inicialmente, quando Ana e Bruna estão juntas,  são  produzidos dois fótons que vamos denominar de A e B , e que estão em um estado emaranhado.  O fóton A sendo mantido  no laboratório de Ana e o outro fóton Bruna leva para o seu laboratório  (com cuidado para não romper o entrelaçamento).  Estes dois fótons emaranhados são peças importantes para o processo de teletransporte, e devem ser mantidos com cuidado.

     Algum tempo depois, Ana deseja enviar um fóton  (que vamos chamar de X) para Bruna. Ana não sabe em qual estado está este fóton e sendo conhecedora de mecânica quântica, sabe que  ao realizar a medida no fóton, vai obter resultados probabilísticos e não vai ser possível saber qual o estado do fóton X (que em geral será estará em um estado com a superposição dos estados 0 e 1).  Mas Ana quer que Bruna tenha o mesmo fóton X.   Como fazer para passar as informações do fóton X para Bruna, de forma que o fóton seja exatamente o X?  A resposta é: faça um teletransporte quântico.

    Para poder realizar o teletransporte, Ana deve inicialmente construir um novo estado no qual a informação do fóton X fica emaranhado com o fóton A. Como os fótons A e B estão emaranhados, ao produzir o novo estado do fóton X emaranhado com o fóton A, isto também afeta o fóton B no laboratório  de Bruna, que lembremos está distante.  Agora Ana está pronta para realizar a segunda parte do processo de teletransporte, e   neste estado emaranhado,  mede o estado do fóton A, não a do fóton X. Neste processo de medida Ana vai obter um resultado (neste caso podemos mostrar que existem quatro possibilidades, e isto decorre do fato de termos dois fótons cada um com dois possíveis estados) e este resultado deve ser enviado para Bruna. Este envio é realizado por exemplo, enviando uma mensagem eletrônica, ondas de rádio ou qualquer outro processo usual (dizemos que está enviando uma informação clássica, o que significa que a informação não pode ser transportada mais rapidamente que a luz).

    De posse do resultado enviado pela Ana, Bruna faz um conjunto de medidas em seu fóton B que deixou guardado com cuidado, e que vamos lembrar, foi produzido em um estado emaranhado com o fóton A  de Ana. Ao final deste procedimento, Bruna obtém o mesmo fóton X de Ana, finalizando o processo de teletransporte. Dizemos então que o fóton original X de Ana foi teletransportado para  Bruna. É importante deixar bem claro que NÃO ocorreu nenhum transporte de matéria  de Ana para Bruna, mas o transporte de informações quânticas  (informações sobre o estado do fóton X que foi emaranhado com o fóton A no laboratório de Ana), e que o teletransporte não ocorre com velocidade acima da luz, pois para que o teletransporte seja efetivado, as informações  (informações clássicas) dos procedimentos que Ana realizou em seu laboratório, devem ser enviados para Bruna, e isto sempre é realizado com velocidades menor ou igual ao da luz no vácuo. Somente a partir destas informações enviadas por Ana, é possível a Bruna finalizar o teletransporte 

    O teletransporte pode ser imaginado como o envio de um fax? Isto é um envio de instruções  de como obter o fóton X para a Bruna, que obtém então uma cópia de X? Não, pois quando Ana realiza as medidas em seu fóton A,  o fóton X (que está emaranhado com A) após a medida não  será o mesmo (na verdade no nosso exemplo tem 25% de não ser modificado)! Este fato está ligado ao chamado Problema do Colapso da Função de Onda em mecânica quântica, sendo um tema bastante atual de pesquisa. E na física quântica, podemos mostrar que não podemos fazer cópias de um sistema, isto é expresso pelo chamado Teorema de Não Clonagem. O fóton X foi para todo efeito, teletransportado do laboratório de Ana para o laboratório de Bruna, ou em linguagem menos precisa: deixou de existir no laboratório de Ana e apareceu no laboratório de Bruna. 

    Este processo de teletransporte, apesar de ser muito pouco intuitivo  foram observados em experimentos, com fótons e mesmo com átomos. E sua realização experimental, é sem dúvida alguma um grande trunfo indicando a validade da física quântica.

        Um prêmio Nobel sem dúvida alguma, muito merecido.

   
    

fevereiro 07, 2022

A desigualdade de Bell

     Em 1935, Einstein, Podolsky e Rosen publicaram o artigo  (conhecido como artigo  EPR) [1] no qual argumentam que a mecânica quântica não seria uma teoria completa. Apesar de Niels Bohr ter publicado no mesmo ano uma resposta ao artigo EPR, a física teve que esperar cerca de 30 anos para que fosse  possível apresentar uma resposta consistente e que pudesse ser verificada experimentalmente. E isto foi possível, graças ao trabalho de John Bell que publicou um artigo em 1964 [2], no qual apresentou o que hoje denominamos teorema de Bell.  A desigualdade de Bell é uma consequência deste teorema. E o que seria esta desigualdade de Bell? 

    Antes de introduzir a desigualdade de Bell (ou uma das desigualdades), vamos apresentar brevemente o argumento apresentado no artigo EPR, usando uma formulação devido a Ya. Aharanov e D. Bohm, que utiliza um sistema de spin de duas partículas. O spin é uma propriedade quântica que não tem sua contrapartida na física clássica, e quando uma partícula com spin 1/2 é medido possui apenas duas possibilidades de resultado, usualmente representado como +1 e -1. E como sabemos? O spin do elétron quando na presença de um campo magnético, é desviado da sua trajetória e este desvio depende do valor do spin. O resultado deste experimento é de que apenas dois resultados são possíveis, e isto independente de como o campo magnético do aparelho esteja orientado.  Esquematicamente apresentamos este experimento (conhecido como o experimento de Stern Gerlach, de um artigo publicado em 1922) na figura 1.

Figura 1. Representação esquemática do experimento de Stern Gerlach. By Tatoute - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34095239



  Utilizando este sistema de dois estados, podemos construir um estado emaranhado de duas partículas, que representamos como

$\frac{1}{\sqrt{2}} \left(\Psi_{(+)} \Phi_{(-)}- \Psi_{(-)}\Phi_{(+)} \right) $

e não se assuste com a equação.  Apenas passamos para uma forma de equação a representação que utilizamos anteriormente, que apresentamos novamente na figura 2 [3].

Figura 2. Representação esquemática do estado emaranhado. 

   O primeiro termo na equação   deve ser  lido como "a partícula 1 tem spin +1 e a partícula 2 tem spin -1", e o segundo termo  deve ser lido como "a partícula 1 tem spin -1 e a partícula 2 tem spin +1", e a equação toda corresponde a um estado de superposição. Nesta situação se efetuarmos a medida na partícula 1 e  obtivermos como resultado +1, a medida na segunda partícula deve resultar em -1.  Na mecânica quântica, é a medida que faz com que o spin seja +1 ou -1, antes da medida está em um estado de superposição. E isto independente da distâncias entre as duas partículas. O que o artigo de EPR argumenta é de que não é o processo de medida que faz com que o spin seja +1 ou -1, mas de que existe algum mecanismo ainda desconhecido, que não está sendo considerado na descrição do sistema, e como consequência   a medida se apresenta como probabilística. Se fosse possível ter todas as informações ,  poderíamos  dizer com certeza qual o resultado da medida. A analogia é na brincadeira da moeda cara-e-coroa, se fosse possível ter todas as informações, teríamos condições (a princípio) de dizer com certeza se o resultado de jogar a moeda seria cara ou coroa. Portanto, para os autores do artigo EPR, a mecânica quântica seria uma teoria incompleta (mas não uma teoria errada).

O que John Bell apresentou foi uma possibilidade de verificar experimentalmente se existiria ou não alguma variável que não estaria sendo considerada pela mecânica quântica. E neste caso, o fato da partícula 1 ter spin +1 e a partícula 2 ter spin -1 (ou vice-versa) não seria um resultado da medida, mas sim uma propriedade do sistema que não estaria sendo contemplado pela mecânica quântica. E neste caso, não haveria o problema de transmissão de informação  instantânea, pois as propriedades de ter apin +1 ou -1 já estaria presente na partícula e não seria resultado do processo de medida. 

De forma esquemática,  o procedimento seria o seguinte. Um sistema emaranhado de duas partículas é produzido, e cada par é enviado para duas pessoas, que mantendo a tradição da física, serão a Alice e o Bob.  Este par é produzido de tal forma que se uma das partículas tem spin +1 e outra terá spin -1 (considerando uma mesma direção de orientação para medir o spin de ambas as partículas). Alice tem a liberdade de escolher as direções   para realizar a medida do spin da sua partícula,  e igualmente Bob tem a liberdade de fazer suas escolhas de direções para a medida do spin na sua partícula.  As escolhas das direções sendo realizadas aleatoriamente e de tal forma que não seja possível ocorrer uma transmissão de sinal entre Alice e Bob que possam influenciar os resultados, isto é, Alice faz suas medidas de forma independente de Bob e vice-versa. Ambos recebem uma grande quantidade de pares e vão fazendo suas medidas e coletando os resultados.  Por ser um sistema de dois estados, os possíveis resultados das medidas podem ser representados como +1, e -1, independente da direção escolhida para fazer a medidas.  Alice faz uma tabela com os resultados obtidos em cada uma das direções escolhidas e Bob faz a mesma coisa.   A partir destes dados, é possível montar diferentes relações (as chamadas desigualdades de Bell) e comparar o resultado obtido com a previsão da mecânica quântica.  

Para a construção da desigualdade de Bell, assumimos que a medida de Alice  não influencia e medida de Bob (dizemos que é um critério de localidade) e que cada partícula tem um spin definido, não sendo resultado do processo de medida (dizemos que é uma visão realista do mundo). Estas duas hipóteses, formam  a visão de uma natureza localmente realista [4]

Para obter a desigualdade de Bell, vamos considerar que no nosso experimento, Alice e Bob podem realizar medidas em três direções, que representamos pelas letras a,b,c.  E a condição que temos que considerar é que se para uma partícula a=+1 para  outra terá que ser a=-1  e vice-versa, e igualmente para as outras duas direções. Assim,  vamos inicialmente considerar  que a partícula 1 tenha (a,b,c)=(+1,+1,+1), então necessariamente a partícula 2 deve ter (a,b,c)=(-1,-1,-1).  Se consideramos todas as possíveis combinações de sinais, devemos ter um total de  8 pares, sempre considerando que a mesma componente do spin, nas duas partículas devem ser opostas. A tabela 1, ilustra estas  oito combinações possíveis [5]

Tabela 1. Valores das componentes do spin para as duas partículas. Em destaque o caso com a=+1 e c=-1, respectivamente para as partículas 1 e 2.



Na primeira coluna indicamos a frequência que estas combinações aparecem no experimento. Os valores das frequências obtidas em cada situação, não é importante, mas precisamos lembrar que são todos números positivos. 

    Vamos imaginar que Alice faz uma medida na direção a, obtendo a=+1 e Bob faz a sua medida na direção c, obtendo c=-1. Neste caso, ou a situação é a descrita por $n1$ ou $n3$, isto é a frequência que Alice obtém a=+1 e Bob obtém c=-1, é dado pela soma $n1+n3$ (ver o destaque em vermelho na tabela 1). Outra possibilidade é Alice medir na direção b e obter b=-1 e Bob medir na direção c e obter c=-1. Olhando na tabela, esta situação corresponde a $n3$ e $n7$, portanto a frequência de resultados com (Alice) b=-1 e  (Bob) c=-1 será $n3+n7$.  E podemos continuar com diversas outras combinações de resultados.   Vamos começar com uma igualdade

$n1+n3= n1+ n3$

e como as frequências são positivas, podemos construir a desigualdade

$n1+n3\le n1+n2+n3+ n7$

Notemos que $n1+n3$ é a frequência que ocorre  resultado de partícula 1 com a=+1 e partícula 2 com c=-1 e vamos representar como $p(a+,c-)$ , e $n3+n7$ a frequência que ocorre o resultado da partícula 1 ter b=-1 e a partícula 2 ter c=-1 e que vamos representar como $p(b-,c-)$ , como já vimos antes. O termo $n1+n2$, olhando a tabela, corresponde a ter para a partícula 1 a=+1 e para a partícula 2 b=-1, que vamos representar como $p(a+, b-)$, logo podemos escrever

$p(a+, c-)\le p(b-,c-)+p(a+,b-)$

obtendo uma desigualdade, que pode ser comparada com a previsão da mecânica quântica e/ou testada experimentalmente.  Como podemos trabalhar com diferentes escolhas de pares de medidas, podemos obter outras desigualdades, portanto temos todo um conjunto de desigualdades de Bell. É importante ressaltar que para obter este resultado, não utilizamos a mecânica quântica (exceto o spin), e  assumimos que a correlação entre as componentes do spin é uma propriedade da partícula e não o resultado da medida. Outra condição é de que a correlação é produzida localmente. Isto é a desigualdade de Bell expressa a existência de uma propriedade real das partículas, independente da medida e que as interações são locais. (Dizemos que a desigualdade de Bell expressa uma visão de mundo que é localmente realista).

    Experimentos para testar a desigualdade de Bell, tem sido realizados desde os anos de  1970 [7], principalmente após a publicação de uma versão da desigualdade de Bell (conhecida como desigualdade de CHSH [8], que se mostrou mais adequado para implementação experimental)  e em todos os experimentos a desigualdade de Bell é violada! Isto implica que das duas hipóteses (realismo e localidade)  utilizadas para a obtenção da desigualdade de Bell,   uma delas está errada ou ambas estão erradas. Não exclui necessariamente a existência de variáveis ocultas, mas torna a sua existência bem mais restrita.

Figura 3. John Bell  olhando a desigualdade de CHSH, que preve o valor de 2 e o valor obtido pela mecânica quântica $2\sqrt{2}$ que viola a desigualdade. (http://cds.cern.ch/record/969981 )

     Podemos dizer que o teorema de Bell está completamente demonstrado? A rigor não, pois existem possíveis brechas nos experimentos, apesar de serem brechas cada vez mais restritas [7]. Talvez fechar todas as brechas, não seja uma tarefa possível. No entanto, é interessante que um assunto que aparentemente não teria nenhuma aplicação imediata (o teorema de Bell e suas desigualdades), pode ser fundamental para a construção de um sistema de criptografia quântica [8]. Talvez a chamada segunda revolução quântica torne o que era uma área negligenciada pela física (a área de fundamentos da mecânica quântica) em uma área de intensa pesquisa, quem sabe antes do esperado ano da física quântica em 2025.

[1] Einstein, A., Podolsky, B. & Rosen, N. Can quantum-mechanical description of physicical reality be considered complete? Phys. Rev. 47, 777 (1935).

[2] J. S. Bell, “On the Einstein-Podolsky-Rosen Paradox,” Physics 1, 195 (1964) ou em J. S. Bell, “Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics,” (Cambridge University Press, Cambridge, 2004)

[3] O fator de $1/\sqrt{2}$ e o fato de utilizarmos uma subtração e não uma soma (como na representação da figura 2), não é importante no momento.

[4] B. d' Espagnat, The Quantum Theory and Reality, Scientific American, novembro de 1979.

[5] Ver por exemplo  no livro do J.J. Sakurai Mecânica Quântica Moderna. A obtenção da desigualdade de Bell, como realizado em [2] pode ser lido de forma bem didática no livro de D. Griffiths, Mecânica Quântica. 

[7] Alain ASpect, Closing the door on Einstein and Bohr’s quantum debate. Physics 8, 123 (2015)

[8] Uma demonstração simples de como obter a desigualdade de CHSH, pode ser vista em M.A. Nielsen e I.L. Chuang Quantum Computation and Qunatum Information, Cambridge  University Press.

[9] Iulia Georgescu, How the Bell tests changed quantum physics, Nature Reviews, 2021.