janeiro 25, 2024

Gasto de energia de um carro

   

Fonte

    Em um concurso realizado pela Shell em 2023 o vencedor (Drop Team,  representando o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Erechim) teve um consumo de 716 km por litro de combustível. Será que um carro urbano em condições normais conseguiria este consumo?

    Esta é uma questão bem interessante, principalmente em um momento que as discussões sobre a necessidade  de reduzir o consumo de combustíveis fósseis é uma urgência.

    Para colocar um carro em movimento a partir do repouso, consumimos uma certa quantidade de energia, que é obtida do combustível utilizado. Esta energia é utilizada  para produzir o movimento do carro. Na hipótese irreal de perdas nulas de energia, uma vez colocado em movimento, o carro  manteria seu estado de movimento indefinidamente. Isto é, poderíamos desligar o motor e o carro ficaria eternamente em movimento. Neste caso, o consumo seria apenas o necessário para colocar o carro em movimento. Uma estimativa do consumo nesta situação completamente irreal, é interessante para podermos ter uma noção aproximada dos gastos de energia que ocorrem em um carro.

Inicialmente precisamos saber quanto de energia temos disponível em um litro de gasolina. Um litro de gasolina contém cerca de 9000 Wh  (9kWh) ou no sistema internacional de unidades, cerca de 32 milhões de joules por litro (32MJ/L). Como uma primeira estimativa, vamos considerar um carro com massa de 1400 kg (considerando o carro e seus passageiros), e determinar quanto de energia necessitamos para fazer o carro deslocar com velocidade de 100 km/h a partir do repouso. Como todo "bom" exercício de física, vamos inicialmente desconsiderar as forças dissipativas (depois vamos incluir, não fique preocupado), neste caso basta determinar a energia cinética do carro, que é dada pela equação  $\frac{mv^2}{2}  $ e obtemos o valor cerca de  540 mil joules (540 kJ), que é  cerca de de 2% da energia contida em um litro de gasolina. Assim, na ausência de qualquer processo dissipativo, com cerca de 20 mL de gasolina, poderíamos fazer um carro andar com velocidade de 100 km/h  por um tempo indeterminado (já que não teria dissipação).  No entanto, existem sempre processos que consomem a energia inicial  de forma que para manter o movimento, precisamos fornecer sempre uma certa quantidade de energia, o que torna a questão do consumo um problema bastante complexo. 

    Mas quais processos consomem a energia fornecida pelo combustível, e portanto influenciam no consumo? Para tentarmos reduzir o consumo, precisamos inicialmente determinar  estes processos.   Existem diferentes fatores que influenciam no consumo de combustível em um carro que podem ser separados em diferentes grupos (ver A review of vehicle fuel consumption models to evaluate eco-driving and eco-routing  para detalhes de cada item): 

  1. Relacionado com o veículo, exemplo   o motor. 
  2. Relacionado com a viagem , exemplo distância da viagem.
  3. Relacionado com a estrada ,  exemplo o piso da estrada, a inclinação.
  4. Relacionado com o clima,  exemplo a temperatura, o vento.
  5. Relacionado com o tráfego,exemplo variação no movimento devido aos sinais de trânsito.
  6. Relacionado com o motorista, exemplo comportamento do motorista.

    A energia fornecida pelo combustível é utilizado para movimentar o motor, e este movimento é transferido para as rodas, fazendo que o carros se desloque. Mas nem toda energia fornecida pelo combustível pode ser utilizada para movimentar o carro. Boa parte da energia é perdida devido aos diversos processos dissipativos existentes.

    Mas antes de considerar perdas por processos dissipativos, podemos desde  o início verificar quanto da energia inicial  pode ser utilizado para realizar algum trabalho útil. E isto é possível determinar com o uso da termodinâmica. Um limite superior pode ser determinado considerando o que conhecemos como ciclo de Carnot. Este ciclo é uma construção idealizada,  e por esta razão nenhuma máquina real pode ter uma eficiência maior que uma máquina ideal de Carnot. A eficiência de uma máquina operando em um ciclo de Carnot, depende apenas  das temperaturas máximas e mínimas que a máquina trabalha.  Mas um motor de combustão interna, não opera em ciclo de Carnot, sendo melhor descrito pelo ciclo de Otto (para uma descrição do ciclo Otto, ver por exemplo Máquinas térmicas à combustão interna de Otto e de Diesel ). Neste caso, a eficiência vai depender basicamente da taxa de compressão do motor (mantendo o mesmo combustível). No caso ideal, o rendimento de um motor trabalhando no ciclo Otto é cerca de 50%, isto é, metade da energia fornecida é utilizada para gerar o movimento. Para motores reais, o valor é menor, e se considerarmos todas as perdas devido ao atrito, qualidade do combustível, gastos para injetar o combustível, e outros fatores, a energia disponível para movimentar o carro é cerca de  30%  da energia inicial contida no combustível (Isto é perdemos quase 70% da energia inicial!).  Representando a energia inicial por  $E_0$ , então teremos $0.30 E_0$ de energia disponível para deslocar o automóvel. Isto significa que da energia inicial de 32MJ por litro, temos a disposição menos de 10 MJ por litro. Ou ainda do volume inicial de 1 litro, temos a disposição cerca de 300mL que pode ser utilizado para gerar o movimento do carro. 

    Uma vez colocado em movimento, o motor precisa ser mantido em funcionamento, em especial para vencer o atrito com o solo (atrito de rolamento) e a resistência do ar. Este dois termos contribuem de maneira significativa para o consumo de energia. O primeiro termo sendo dominante para baixas velocidades e o segundo termo em altas velocidades. No artigo Potência de tração de um veículo automotor que se movimenta com velocidade constante, é realizado uma estimativa para uma situação em particular , sendo obtido que para a velocidade de transição de um regime a outro, obtendo um valor de  60 km/h. Acima desta velocidade o termo de resistência do ar passa a ser mais importante e abaixo desta velocidade, o termo de atrito de rolamento passa a ser mais importante  (no modelo analisado no artigo). Neste caso, para reduzir o consumo, o melhor é deslocar com velocidades menores. Estando em movimento, também consumimos uma parte de energia para frear o carro. Estas perdas (resistência do vento, atrito de rolamento e freagem), podem consumir de cerca de 15%  a 25% da energia.

    Por fim, devemos lembrar que situações dentro de áreas urbanas, o consumo aumenta muito , por que estamos constantemente andando e parando, o que aumenta significativamente o consumo de combustível. No caso de áreas urbanas, o consumo aumenta muito devido ao tempo que o carro fica parado no trânsito. Nos carros modernos, ficar com o motor ligado por mais de cerca de 30 segundos, consome mais do que dar novamente a partida. Neste processo de ficar parado no trânsito com o motor ligado, pode se gastar cercar de 3% da energia total. 

     Se somarmos todos os percentuais, não completamos 100%, pois existem outros consumos que não consideramos (que são devido a utilização de controle eletrônico, ar-condicionado, iluminação , estilo de de condução e outros fatores, para alguns detalhes sobre estes consumos, ver  Where the Energy Goes: Gasoline Vehicles ). Mas o interessante é que o consumo maior ocorre devido ao atrito de rolamento e a resistência do ar. 

        Em relação a pergunta inicial, se um carro normal poderia atingir a marca de 716 km por litro,  para fornecer uma resposta mais precisa, teríamos que analisar cada processo dissipativo com detalhes. Mas, podemos fornecer uma resposta qualitativa, comparando algumas informações, em especial a massa. QPor exemplo, na categoria Protótipo Combustão Interna  a massa do veículo não pode exceder 140 kg (categoria que o consumo foi de 716 km por litro), e na categoria de Carro Conceito Urbano a massa não pode exceder 225 kg (de acordo com as regras de 2023 ), em ambos os casos sem considerar o piloto (que também tem um limite inferior de massa). Desta forma, se consideramos que no Brasil o carro com menor massa tem cerca de 800 kg,  fica claro que atingir o mesmo consumo  não seria possível, mesmo mantendo as outras variáveis constantes.  Para um carro normal,  além da massa maior a seção reta deve ser maior de forma que a resistência do ar deve se tornar mais importante, além disso na Shell Marathon, a velocidade mínima é 20 km/h , que e muito inferior às velocidade em áreas urbanas e muito menor do que nas estradas, além de outras modificações no carro protótipo, de forma que no final o  consumo deve aumentar de maneira significativa. Mas mesmo assim, este tipo de competições pode trazer desenvolvimentos que podem reduzir o consumo nos carros normais. O ideal seria consumo e poluição menores, ou mudar o tipo de motor utilizado.



 

janeiro 14, 2024

Uma mancha de café e a impressora jato de tinta

    Qual a relação entre a mancha de  café e uma impressora jato de tinta?

    O café é uma bebida extremamente popular,  com um consumo 4,77 kg por habitante por ano (dados de 2022 da ABIC ), e assumindo que 1 litro de café necessita cerca de 100g de café, temos um consumo per capita de  cerca de 48 litros de café por ano,  o que resulta quase duas xícaras (xícara de café pequena) por dia por habitante (lembrando que é uma estimativa considerando um consumo para TODA população).

    Isto implica que possivelmente, muitas pessoas já devem ter visto uma mancha de café. As manchas possuem diversas características, e naturalmente dependem da superfície e da concentração do café. Mas uma bem interessante é aquela mancha que nas bordas a mancha é mais forte (figura 1), formando um anel de café.


Figura 1. A mancha característica do café.


    Quando colocamos uma gota de café, inicialmente o a gota é bem homogênea, então qual seria a razão para que mancha fique concentrada apenas na borda? A evaporação não deveria simplesmente secar a gota e deixar o pó de café espalhado homogeneamente?  

    Com a evaporação, o liquido de fato é removido da gota. Com a evaporação a altura da gota diminui e esperamos que  o raio da gota também  diminua.  Mas é preciso considerar que se a borda externa da gota estiver fixa, o seu raio não pode diminuir.  

A figura 2, retirado de [1], ilustra este processo.

Figura 2. Uma ilustração do fluxo do líquido durante a evaporação. (Fonte, referencia [1])

    Na figura 2a, o perfil em verde é a gota original, com a evaporação SE o raio diminuir, a gota assumiria o perfil da parte em branco. Na figura 2b, o raio sendo mantido fixo e ocorrendo a evaporação, o perfil assume a forma da linha mais espessa em preto.  Mas para manter o raio fixo, ocorre o fluxo do líquido (setas em cor azul). Este fluxo transporta o material particulado dissolvido no líquido. A figura 3 (retirado de [1]), é uma composição de diversas imagens obtidas em instantes de tempo diferentes, e o movimento do material particulado surge como traços ao longo das imagens.  A linha vermelha é a borda da gota.

Figura 3. Composição de diversas imagens registrando o movimento do material particulado. (fonte [1])

    A formação desta mancha destacada na borda, depende do material  tanto da gota como da superfície, assim como das condições ambientais. Se a evaporação ocorrer em um tempo muito menor que o tempo característico do movimento das partículas no líquido, a mancha tende a ficar mais homogênea. 

    A figura 4 é um exemplo de como a superfície é importante. Ambas as gotas foram colocadas em um papel milimetrado, mas no da esquerda, o papel foi forrado com uma película plástica, de forma que a gota secou sobre a película plástica e no lado direito, diretamente no papel, que absorveu a gota.

Figura 4. A influência da superfície na formato da mancha.

    E qual a relação com as impressora jato de tinta? Uma impressora jato de tinta, deposita uma gota em uma superfície. Se o efeito de formação do "anel de café" não foi devidamente considerado, a impressão perderá qualidade. Desta forma, as impressoras de boa qualidade, consideram este efeito e utilizam diferentes técnicas para a reduzir ao máximo a formação deste "anéis de café" [2]. 

    As aplicações decorrentes do estudo da formação da mancha de café, tem ocorrido em diferentes áreas além da física. E surgiu de um estudo de uma situação bastante cotidiana:  observação de uma mancha de café [3].

    Agora podemos tomar nosso café e olhar a mancha produzida, com outra perspectiva. E se alguém reclamar, diga que está realizando um experimento científico com muitas aplicações práticas.

 


Notas e Referências

[1] Deegan, R., Bakajin, O., Dupont, T. et al. Capillary flow as the cause of ring stains from dried liquid drops. Nature 389, 827–829 (1997). https://doi.org/10.1038/39827 ou neste link de acesso livre.

[2] Qiu, X.; Gong, X.; Zhang, X.; Zheng, W. Ink-Jet Printing towards Ultra-High Resolution: A Review. Coatings 202212, 1893. https://doi.org/10.3390/coatings12121893 

 [3]  Para quem estiver curioso, na física esta área faz parte do que denominamos Sistemas Complexos ou como prefere De Gennes (prêmio Nobel de Física de de 1991 ) Soft Matter ou Matéria Mole.

 

janeiro 08, 2024

Nosso calendário se repete a cada 28 anos?

 Vamos primeiro definir o que significa "calendário se repete". Significa que se dois  anos começam no mesmo dia da semana e o último dia do ano também ocorrem na mesma semana para ambos os dois anos, o calendário é repetido.

    Podemos verificar isto de forma relativamente simples. Vamos considerar um ano com  365 dias, isto implica que temos 52 semanas mais um dia em um ano. Isto que dizer que se o dia primeiro de janeiro é um domingo, o dia 31 de dezembro será também um domingo.  Assim, o outro ano inicia em uma segunda-feira e o ano terminá em uma segunda-feira, e assim sucessivamente até que no sétimo ano o calendário iniciaria novamente em um domingo, e o calendário voltaria a repetir e a sequência se manteria sendo retomada a cada sete anos. Na tabela 1 apresentamos um exemplo, começando com um ano arbitrário, que definimos como ano 1. Anotamos o dia da semana que o ano inicia e o dia da semana que o ano termina.

Tabela 1. Repetição dos anos

    Mas estamos esquecendo de um detalhe importante, os anos bissexto! A cada 4 anos  precisamos acrescentar um dia ao ano. E isto implica que no quinto ano, o deslocamento será  de dois dias e não de um dia da semana. Quando consideramos os anos bissextos, para que ocorra uma repetição do calendário, a o período não é mais a cada sete anos.  Considerando um ano de 365,25 dias, temos um total de 52 semanas  mais 1,25 dias. Para ocorrer a repetição é necessário multiplicar 1,25 por um número inteiro de tal forma que o resultado seja um múltiplo inteiro de 7 ,os dias das semana, ou seja precisamos resolver a equação $ 1,25 p=7q $, de forma que $p/q$ seja um número inteiro. Fazendo  a conta, encontramos que $ p/q=5,6 $. Como $p,q$ são números inteiros,  encontramos que a cada 28 anos  o calendário se  repete.

    Será verdade? Se olharmos por exemplo o ano de 2017, que começa em um domingo e termina em um domingo, encontramos que em 2023, o mesmo acontece. E o intervalo de tempo não é de 28 anos! O que está errado?

    Nada está errado. De fato, o calendário pode se repetir em períodos menores que 28 anos, mas a sequência completa, ela se repete a cada 28 anos. Na tabela 2 repetimos o procedimento utilizado para construir a tabela 1, agora incluindo os anos bissextos, que estão destacados com um fundo amarelo. Note que o correspondente ao ano 1 (domingo-domingo) ocorre novamente no ano 7 e no ano 18 (marcados com fundo laranja), mas note que o ano 2 é diferente do ano 8 e ano 19. Mas iniciando no ano 29, tudo se repete, notando que o ano 30 é igual ao ano 2,o ano 31 é igual ao ano 3 e assim sucessivamente.



Tabela 2. Considerando os anos bissextos.

    O que denominamos período é o intervalo de tempo para toda sequência voltar a ocorrer, isto não quer dizer que uma pequena parte da sequência não possa aparecer dentro do período. Por exemplo, considere a seguinte sequência de números 

1,2,3,5,6,7,1,3,4,5,6,1,2,3,4,6,7,1,2,4,5,6,7,2,3,4,5,7

1,2,3,5,6,7,1,3,4,5,6,1,2,3,4,6,7,1,2,4,5,6,7,2,3,4,5,7

1,2,3,5,6,7,1,3,4,5,6,1,2,3,4,6,7,1,2,4,5,6,7,2,3,4,5,7

    Notemos que a sequência completa repete a cada 28 números (que destacamos em cores diferentes), mas  por exemplo o número 5 aparece com intervalo menor que a cada 28 números [1].  Então o que ocorre com nosso calendário é algo parecido, a periodicidade de uma sequência ocorre a cada 28 anos, mas isto não implica que para que o calendário seja repetido sejam necessários aguardar 28 anos.    

    Mas o período de 28 anos, também não é correto! Por que? Quando calculamos os anos bissextos, a cada 100 anos, o ano não será bissexto, exceto se for múltiplos de 400 anos. Fica como uma diversão, tentar determinar como ocorrem as repetições dos calendários considerando estas condições de 100 e 400 anos.

    Nota

[1] A sequência representa exatamente o que ocorre com o calendário. Cada número representa o dia da semana que o ano inicia (por exemplo 1 é domingo, 2 é segunda-feira e assim sucessivamente). Você pode utilizar uma sequência semelhante para responder o desafio do que ocorre se consideramos os períodos de 100 e 400 anos. Se você sabe por exemplo utilizar uma planilha, consegue facilmente programar a construção da sequência numérica.

janeiro 03, 2024

A Pseudo Telepatia Quântica

   

Xu et al 




       O nome infeliz de pseudo telepatia quântica, descreve uma consequência bastante interessante da mecânica quântica, sendo ilustrada em uma situação de um jogo que permite um grupo vencer  sempre, se  utilizarmos a mecânica quântica, mas com regras da física clássica, não seria possível vencer sempre.

   Este jogo é o denominado Jogo do Quadrado Mágico (Quadrado Mágico de Mermin-Peres) , que utiliza um tabuleiro de três linhas e três colunas, tendo dois jogadores, digamos Antônio e Bruna  e um juiz , digamos Xavier. A dinâmica do jogo sendo a seguinte. Inicialmente Xavier escolhe qual linha Antônio  deve preencher e qual coluna Bruna deve preencher. Esta escolha é realizada de forma aleatória, e Antônio não sabe qual coluna Bruna via preencher e nem Bruna sabe qual linha Antônio vai preencher. O preenchimento das linhas e colunas devendo ser feita com o número 1  ou o número -1, com a condição de que o produto dos números da linha de Antônio seja sempre +1 e da coluna de Bruna seja sempre  -1. Isto significa que Antônio pode escolher os seguintes conjuntos (1,1,1), (1,-1,-1), (-1,1,-1), (-1,-1,1) e Bruna um dos conjuntos (1,1,-1), (1,-1,1), (-1,1,1) ,(-1,-1,-1). O jogo é uma disputa entre Antônio e Bruna contra Xavier. 

    E como é decidido o vencedor? Note que sempre vai existir um quadrado que será igual entre a linha escolhida por Antônio e a coluna escolhida por Bruna. Se o dígito neste quadrado for igual para Antônio e Bruna, os dois vencem, caso contrário Xavier vence a partida. Digamos que Xavier envie a informação linha 2 para Antonio e coluna 3 para Bruna. Na figura 1, indicamos a posição da linha e da coluna que devem ser preenchidas, com fundo branco e o quadrado comum em vermelho. É importante ressaltar que Antonio não sabe qual coluna Bruna vai preencher e Bruna  não sabe qual linha Antônio vai preencher.



Figura 1. No lado esquerdo um jogo que Antônio e Bruna são vencedores, no lado direito um jogo que Xavier é o vencedor. O # indica +1 para a escolha de Antônio  e -1 para escolha de Bruna. Lembre da regra do produto para as linhas e para as colunas 

    Digamos que Antônio escolhe os números  (1,1,1) , note que o produto é igual a +1 como exigido. Para preencher a sua linha e Bruna escolhe (1,1,-1) para a sua coluna, notando que o produto dos números é -1, como exigido pela regra. Neste caso Antônio e Bruna vencem, pois a intersecção da segunda  linha com a coluna três, é igual a 1  Mas se a escolha de Bruna fosse (-1,-1,-1)   quem venceria o jogo seria Xavier, porque na intersecção Antônia escolheu +1 e Bruna -1, logo são números diferentes.

    A regra permite que antes de começar o jogo, Antônio e Bruna podem conversar e decidir que estratégia seguir no jogo. Mas uma vez iniciado o jogo, Antônio e Bruna não podem mais trocar informações. Em um jogo normal (obedecendo a física clássica), é possível escolher uma estratégia na qual Antônio e Bruna vencem na maioria das vezes, mas não existe uma estratégia que permite Antônio e Bruna vencerem sempre. 

    Por exemplo, uma estratégia que Antônio e Bruna podem adotar  é preencher previamente a tabela com todas as possíveis combinações que resultem em uma vitória, isto é que o produto dos números da linha do Antônio seja +1 , o produto dos números da coluna de Bruna seja -1 e  o número no quadrado comum para a linha de Antonio e a coluna de Bruna tenham o mesmo número. O problema com esta estratégia é que sempre um dos quadrados estará em conflito. Um exemplo é apresentado na figura 2. Note que podemos trocar as ordens das colunas ou das linhas, de forma que o quadrado em conflito pode estar em qualquer lugar da tabela 3x3. Isto quer dizer que NÃO existe uma estratégia que garanta vitórias em 100% dos casos (é possível mostrar que no máximo é possível obter 8 vitórias em 9 jogos, o que não é muito ruim para Antônio e Bruna).



Figura 2. O quadrado vermelho tem que ser -1 para Antônio e +1 para Bruna.
    
    Isto quer dizer que classicamente, não é possível preencher o todos os quadrado com números +1 e -1 de tal forma que o produto em cada linha seja +1 e o produto em cada coluna seja -1. Desta forma não existe estratégia que permita vencer sempre o jogo.

    No entanto, se Antônio e Bruna utilizarem recursos da Mecânica Quântica,   podem vencer  sempre! Isto é possível produzindo um estado emaranhado de duas partículas, e enviando dois para  Antônio e dois para Bruna.

       Qual o procedimento a ser seguido? Quando Antônio recebe a informação de qual linha deve preencher, ele vai aplicar o operador correspondente da sua linha no seu par de partículas, e Bruna faz a mesma coisa utilizando o operador que estão na coluna informada por Xavier.  Após aplicar o respectivo operador nas seus pares de partículas, Antônio e Bruna realizam medidas no estado obtido, provocando o colapso da função de onda. Cada  um obtém dois números e o terceiro deve ser preenchido de acordo com a regra da paridade (para Antônio o produto tem que ser +1 e para Bruna tem que ser -1).  Por serem estados emaranhados, os resultados de Antônio e de Bruna estarão correlacionados e o quadrado em comum sempre terá o mesmo número! De forma que Antônio e Bruna sempre vencem! [1]


    Na prática, devido a existência de ruídos , o entrelaçamento pode ser perdido. Mas em situações em que seja possível controlar o ruído, o número de vitórias de Antônio e Bruna será sempre maior que o caso clássico. Este fato foi demostrado experimentalmente em 2022. Comparando o resultado clássico máximo de 8/9 (cerca de 88,89%) Xu et all, obtiveram  um percentual de cerca de 93,84% de vitórias para Antônio e Bruna, demonstrando que no caso quântico o percentual de vitórias é maior que o máximo permitido pela física clássica [2].  

    O Quadrado Mágico de Mermin-Perez, é mais do que uma curiosidade. Na verdade, inicialmente foi introduzida para discutir a questão da existência de variáveis escondidas na Mecânica Quântica , com uma extensão do Teorema de Bell. A verificação experimental  obtida por Xu et all, é um forte indício de que a nossa interpretação de que o Universo é realista, isto é, as suas propriedades existem independente de observarmos ou não, como defendia Einstein , Podolsky e Rosen (veja por exemplo em  Teorema de Bell e  Teletransporte Quântico ) não é compatível com a Mecânica Quântica.


Notas e Referências

Aqui nas notas, apresentamos alguns detalhes dos artigos, caso alguém queira mais detalhes. Mas o texto é independente destes detalhes, então para quem desejar, pode ignorar estas notas.

[1] Para quem tiver curiosidade, os operadores unitários são 
Fonte Brassard et all ou sua versão livre em Brassard

Os operadores $A_i$ são utilizados por Antônio e corresponde a linha $i$, e os $B_i$ são os utilizados por Bruna e correspondem a coluna $i$. E o estado inicial sendo 
o primeiro e o terceiro par sendo de Antônio e o segundo e o quarto de Bruna. Aqui o estado 0 representa+1 e  o estado 1 representa -1. No artigo é dado um exemplo de Xavier escolher a linha 2 para Antonio e a coluna 3 para Bruna, logo é calculado
Fonte  Brassard

que pode ser obtido após um longo e tedioso cálculo (só precisa realizar produto de matrizes e depois organizar os resultados).  Neste estado Antônio e Bruna realizam a medida para determinar seus bits clássicos, notemos que existem 8 possíveis resultados. Os dois primeiros quibts correspondem agora a de Antônio e o terceiro e o quarto a Bruna. Por exemplo, ao realizar a medida podemos obter o primeiro estado , no nosso caso seria (+1,+1) para Antônio e (+1,+1) para Bruna. Antônio completaria sua linha com +1 e Bruna com -1. Note que o quadrado comum tem o mesmo valor.Para todos os outros valores, sempre vai obter que o quadrado em comum tem o mesmo valor. Uma outra opção é a primeira lina e a primeira coluna, neste caso obtemos

Escolhendo a primeira linha e a primeira coluna.

 Note no primeiro caso Antonio obtém (+1,+1) e  Bruna (+1,+1) , no segundo caso Antônio obtém (+1,+1) e Bruna (+1,-1) e assim sucessivamente. O mais  importante é que o quadrado em comum sempre são iguais, e o quadrado restantes, cada um preenche com o número adequado para validar a sua paridade, 


[2] No artigo de Xu et al  (para acesso livre  ver em arxiv ) as matrizes o estado inicial são diferentes ao do proposto por Brassard , mas é um resultado que testa experimentalmente com bastante precisão, a validade da ideia da pseudo telepatia quântica. Eles utilizam o estado 
e como operadores 
Fonte Xu et all

Neste caso os operadores em cada linha comutam de dois a dois e o mesmo vale para as colunas. E o produto dos operadores em cada linha é igual ao operador unidade e  o produto dos operadores nas colunas é igual a menos a o operador unidade. Note que no quadrado em comum, Antôno e Bruna utilizam o mesmo operador. Sendo possível mostrar que neste caso temos 


indicando que no quadrado comum, os valores serão iguais.