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Em um concurso realizado pela Shell em 2023 o vencedor (Drop Team, representando o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Erechim) teve um consumo de 716 km por litro de combustível. Será que um carro urbano em condições normais conseguiria este consumo?
Esta é uma questão bem interessante, principalmente em um momento que as discussões sobre a necessidade de reduzir o consumo de combustíveis fósseis é uma urgência.
Para colocar um carro em movimento a partir do repouso, consumimos uma certa quantidade de energia, que é obtida do combustível utilizado. Esta energia é utilizada para produzir o movimento do carro. Na hipótese irreal de perdas nulas de energia, uma vez colocado em movimento, o carro manteria seu estado de movimento indefinidamente. Isto é, poderíamos desligar o motor e o carro ficaria eternamente em movimento. Neste caso, o consumo seria apenas o necessário para colocar o carro em movimento. Uma estimativa do consumo nesta situação completamente irreal, é interessante para podermos ter uma noção aproximada dos gastos de energia que ocorrem em um carro.
Inicialmente precisamos saber quanto de energia temos disponível em um litro de gasolina. Um litro de gasolina contém cerca de 9000 Wh (9kWh) ou no sistema internacional de unidades, cerca de 32 milhões de joules por litro (32MJ/L). Como uma primeira estimativa, vamos considerar um carro com massa de 1400 kg (considerando o carro e seus passageiros), e determinar quanto de energia necessitamos para fazer o carro deslocar com velocidade de 100 km/h a partir do repouso. Como todo "bom" exercício de física, vamos inicialmente desconsiderar as forças dissipativas (depois vamos incluir, não fique preocupado), neste caso basta determinar a energia cinética do carro, que é dada pela equação $\frac{mv^2}{2} $ e obtemos o valor cerca de 540 mil joules (540 kJ), que é cerca de de 2% da energia contida em um litro de gasolina. Assim, na ausência de qualquer processo dissipativo, com cerca de 20 mL de gasolina, poderíamos fazer um carro andar com velocidade de 100 km/h por um tempo indeterminado (já que não teria dissipação). No entanto, existem sempre processos que consomem a energia inicial de forma que para manter o movimento, precisamos fornecer sempre uma certa quantidade de energia, o que torna a questão do consumo um problema bastante complexo.
Mas quais processos consomem a energia fornecida pelo combustível, e portanto influenciam no consumo? Para tentarmos reduzir o consumo, precisamos inicialmente determinar estes processos. Existem diferentes fatores que influenciam no consumo de combustível em um carro que podem ser separados em diferentes grupos (ver A review of vehicle fuel consumption models to evaluate eco-driving and eco-routing para detalhes de cada item):
- Relacionado com o veículo, exemplo o motor.
- Relacionado com a viagem , exemplo distância da viagem.
- Relacionado com a estrada , exemplo o piso da estrada, a inclinação.
- Relacionado com o clima, exemplo a temperatura, o vento.
- Relacionado com o tráfego,exemplo variação no movimento devido aos sinais de trânsito.
- Relacionado com o motorista, exemplo comportamento do motorista.
A energia fornecida pelo combustível é utilizado para movimentar o motor, e este movimento é transferido para as rodas, fazendo que o carros se desloque. Mas nem toda energia fornecida pelo combustível pode ser utilizada para movimentar o carro. Boa parte da energia é perdida devido aos diversos processos dissipativos existentes.
Mas antes de considerar perdas por processos dissipativos, podemos desde o início verificar quanto da energia inicial pode ser utilizado para realizar algum trabalho útil. E isto é possível determinar com o uso da termodinâmica. Um limite superior pode ser determinado considerando o que conhecemos como ciclo de Carnot. Este ciclo é uma construção idealizada, e por esta razão nenhuma máquina real pode ter uma eficiência maior que uma máquina ideal de Carnot. A eficiência de uma máquina operando em um ciclo de Carnot, depende apenas das temperaturas máximas e mínimas que a máquina trabalha. Mas um motor de combustão interna, não opera em ciclo de Carnot, sendo melhor descrito pelo ciclo de Otto (para uma descrição do ciclo Otto, ver por exemplo Máquinas térmicas à combustão interna de Otto e de Diesel ). Neste caso, a eficiência vai depender basicamente da taxa de compressão do motor (mantendo o mesmo combustível). No caso ideal, o rendimento de um motor trabalhando no ciclo Otto é cerca de 50%, isto é, metade da energia fornecida é utilizada para gerar o movimento. Para motores reais, o valor é menor, e se considerarmos todas as perdas devido ao atrito, qualidade do combustível, gastos para injetar o combustível, e outros fatores, a energia disponível para movimentar o carro é cerca de 30% da energia inicial contida no combustível (Isto é perdemos quase 70% da energia inicial!). Representando a energia inicial por $E_0$ , então teremos $0.30 E_0$ de energia disponível para deslocar o automóvel. Isto significa que da energia inicial de 32MJ por litro, temos a disposição menos de 10 MJ por litro. Ou ainda do volume inicial de 1 litro, temos a disposição cerca de 300mL que pode ser utilizado para gerar o movimento do carro.
Uma vez colocado em movimento, o motor precisa ser mantido em funcionamento, em especial para vencer o atrito com o solo (atrito de rolamento) e a resistência do ar. Este dois termos contribuem de maneira significativa para o consumo de energia. O primeiro termo sendo dominante para baixas velocidades e o segundo termo em altas velocidades. No artigo Potência de tração de um veículo automotor que se movimenta com velocidade constante, é realizado uma estimativa para uma situação em particular , sendo obtido que para a velocidade de transição de um regime a outro, obtendo um valor de 60 km/h. Acima desta velocidade o termo de resistência do ar passa a ser mais importante e abaixo desta velocidade, o termo de atrito de rolamento passa a ser mais importante (no modelo analisado no artigo). Neste caso, para reduzir o consumo, o melhor é deslocar com velocidades menores. Estando em movimento, também consumimos uma parte de energia para frear o carro. Estas perdas (resistência do vento, atrito de rolamento e freagem), podem consumir de cerca de 15% a 25% da energia.
Por fim, devemos lembrar que situações dentro de áreas urbanas, o consumo aumenta muito , por que estamos constantemente andando e parando, o que aumenta significativamente o consumo de combustível. No caso de áreas urbanas, o consumo aumenta muito devido ao tempo que o carro fica parado no trânsito. Nos carros modernos, ficar com o motor ligado por mais de cerca de 30 segundos, consome mais do que dar novamente a partida. Neste processo de ficar parado no trânsito com o motor ligado, pode se gastar cercar de 3% da energia total.
Se somarmos todos os percentuais, não completamos 100%, pois existem outros consumos que não consideramos (que são devido a utilização de controle eletrônico, ar-condicionado, iluminação , estilo de de condução e outros fatores, para alguns detalhes sobre estes consumos, ver Where the Energy Goes: Gasoline Vehicles ). Mas o interessante é que o consumo maior ocorre devido ao atrito de rolamento e a resistência do ar.
Em relação a pergunta inicial, se um carro normal poderia atingir a marca de 716 km por litro, para fornecer uma resposta mais precisa, teríamos que analisar cada processo dissipativo com detalhes. Mas, podemos fornecer uma resposta qualitativa, comparando algumas informações, em especial a massa. QPor exemplo, na categoria Protótipo Combustão Interna a massa do veículo não pode exceder 140 kg (categoria que o consumo foi de 716 km por litro), e na categoria de Carro Conceito Urbano a massa não pode exceder 225 kg (de acordo com as regras de 2023 ), em ambos os casos sem considerar o piloto (que também tem um limite inferior de massa). Desta forma, se consideramos que no Brasil o carro com menor massa tem cerca de 800 kg, fica claro que atingir o mesmo consumo não seria possível, mesmo mantendo as outras variáveis constantes. Para um carro normal, além da massa maior a seção reta deve ser maior de forma que a resistência do ar deve se tornar mais importante, além disso na Shell Marathon, a velocidade mínima é 20 km/h , que e muito inferior às velocidade em áreas urbanas e muito menor do que nas estradas, além de outras modificações no carro protótipo, de forma que no final o consumo deve aumentar de maneira significativa. Mas mesmo assim, este tipo de competições pode trazer desenvolvimentos que podem reduzir o consumo nos carros normais. O ideal seria consumo e poluição menores, ou mudar o tipo de motor utilizado.