outubro 06, 2022

Teletransporte Quântico

    O teletransporte quântico é uma das consequências  fascinantes  da física quântica, e  foi um dos temas que motivou o Prêmio Nobel de Física de 2022. Mas  o que seria o teletransporte quântico? Para quem conhece as séries e os filmes de Jornadas nas Estrelas, o nome teletransporte é bem conhecido, imortalizado na frase "Beam me up, Scotty", ou em uma versão livremente traduzida como "Dois para subir, Scotty" . Ao final da qual um objeto é teletransportado de um local a outro.  Mas seria o teletransporte quântico a mesma coisa?

    Vamos pelo começo! Para entender o significado do termo teletransporte quântico, precisamos entender alguns conceitos importantes da física quântica. Uma delas é os chamados estados emaranhados, explicado no texto  Estados Emaranhados Em Mecânica Quântica .  Estes estados foram propostos pela primeira vez, por Erwin Schroedinger, em um artigo que ele apresenta o famoso experimento mental do Gato de Schroedinger (para uma versão traduzida para o inglês, ver  aqui), no qual ele apresenta uma superposição de estados do Gato Morto e Gato Vivo, que existiria até o instante que alguém realizasse uma medida. 

    Einstein, Rosen e Podolsky  publicaram em 1935, um artigo (que pode ser acessado aqui ) onde utilizam a ideia dos estados emaranhados, para propor que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta.  Durante muitos anos, não foi possível responder de forma experimental se os argumentos de Einstein, Rosen e Podolsky seriam corretos ou não, de forma que a questão ficou por muitos anos esquecida, ou apenas como uma curiosidade. Mas nos finais dos anos de 1960, um grupo de físicos retomariam o tema e começaram a estudar com mais detalhes este assunto, em especial, os trabalhos de John Bell foram fundamentais para o ressurgimento do interesse sobre o assunto  (sobre  este assunto, uma leitura é o texto A Desiguldade de Bell   que foi publicado no blog).

    Caso não tenha ainda lido sobre o que são os estados emaranhados, vamos fazer uma rápida descrição. Imagine que você tenha dois dados (verde  e vermelho, como na figura 1), e ao jogar os dados , os números são sempre iguais em ambas as faces: se no primeiro dado aparece a face 6, no segundo também será 6 e assim para quaisquer outro número existente no dado: qualquer que seja a face que aparece no dado que foi jogado (digamos o verde) , no dado vermelho  a face resultante será a mesa. Estes dados na linguagem da mecânica quântica estão entrelaçados ou emaranhados. (Esta é uma construção simplificada, mas ajuda a entender o conceito do emaranhamento). 

Figura 1 Dados entrelaçados (adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Two_red_dice_01.svg )




    No teletransporte quântico, o que se faz  é preparar um par de dados emaranhados e enviar um dos pares para um local distante, e deixar ele guardado.  Nos experimentos, ao invés de dados, são utilizados por exemplo fótons, que são as partículas da luz. Fazendo a analogia com um dado, o fóton tem apenas "duas faces", isto é, podem resultar em "dois números", como as faces de uma moeda (cara ou coroa ou usualmente representados como  os  estados  0 e 1).  Um outro ingrediente importante para o nosso processo é a possibilidade de construir os estados de superposição, isto é, o um estado no qual o fóton está em uma combinação do estado 0 e do estado 1 (este é o famosos estado do gato de Schroedinger, que na descrição da física quântica está em um estado que é  a mistura (superposição) do gato vivo e o gato morto). 

Figura 2. Autor By Dhatfield - Own work, CC BY-SA 3.0, fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4279886


     O objetivo do teletransporte é fazer com que um fóton que esteja em um local, seja enviado para um outro local distante. Para ilustrar este processo, vamos imaginar dois laboratórios, um cuja responsável é a Ana e um outro  laboratório cujo responsável é a Bruna.  Inicialmente, quando Ana e Bruna estão juntas,  são  produzidos dois fótons que vamos denominar de A e B , e que estão em um estado emaranhado.  O fóton A sendo mantido  no laboratório de Ana e o outro fóton Bruna leva para o seu laboratório  (com cuidado para não romper o entrelaçamento).  Estes dois fótons emaranhados são peças importantes para o processo de teletransporte, e devem ser mantidos com cuidado.

     Algum tempo depois, Ana deseja enviar um fóton  (que vamos chamar de X) para Bruna. Ana não sabe em qual estado está este fóton e sendo conhecedora de mecânica quântica, sabe que  ao realizar a medida no fóton, vai obter resultados probabilísticos e não vai ser possível saber qual o estado do fóton X (que em geral será estará em um estado com a superposição dos estados 0 e 1).  Mas Ana quer que Bruna tenha o mesmo fóton X.   Como fazer para passar as informações do fóton X para Bruna, de forma que o fóton seja exatamente o X?  A resposta é: faça um teletransporte quântico.

    Para poder realizar o teletransporte, Ana deve inicialmente construir um novo estado no qual a informação do fóton X fica emaranhado com o fóton A. Como os fótons A e B estão emaranhados, ao produzir o novo estado do fóton X emaranhado com o fóton A, isto também afeta o fóton B no laboratório  de Bruna, que lembremos está distante.  Agora Ana está pronta para realizar a segunda parte do processo de teletransporte, e   neste estado emaranhado,  mede o estado do fóton A, não a do fóton X. Neste processo de medida Ana vai obter um resultado (neste caso podemos mostrar que existem quatro possibilidades, e isto decorre do fato de termos dois fótons cada um com dois possíveis estados) e este resultado deve ser enviado para Bruna. Este envio é realizado por exemplo, enviando uma mensagem eletrônica, ondas de rádio ou qualquer outro processo usual (dizemos que está enviando uma informação clássica, o que significa que a informação não pode ser transportada mais rapidamente que a luz).

    De posse do resultado enviado pela Ana, Bruna faz um conjunto de medidas em seu fóton B que deixou guardado com cuidado, e que vamos lembrar, foi produzido em um estado emaranhado com o fóton A  de Ana. Ao final deste procedimento, Bruna obtém o mesmo fóton X de Ana, finalizando o processo de teletransporte. Dizemos então que o fóton original X de Ana foi teletransportado para  Bruna. É importante deixar bem claro que NÃO ocorreu nenhum transporte de matéria  de Ana para Bruna, mas o transporte de informações quânticas  (informações sobre o estado do fóton X que foi emaranhado com o fóton A no laboratório de Ana), e que o teletransporte não ocorre com velocidade acima da luz, pois para que o teletransporte seja efetivado, as informações  (informações clássicas) dos procedimentos que Ana realizou em seu laboratório, devem ser enviados para Bruna, e isto sempre é realizado com velocidades menor ou igual ao da luz no vácuo. Somente a partir destas informações enviadas por Ana, é possível a Bruna finalizar o teletransporte 

    O teletransporte pode ser imaginado como o envio de um fax? Isto é um envio de instruções  de como obter o fóton X para a Bruna, que obtém então uma cópia de X? Não, pois quando Ana realiza as medidas em seu fóton A,  o fóton X (que está emaranhado com A) após a medida não  será o mesmo (na verdade no nosso exemplo tem 25% de não ser modificado)! Este fato está ligado ao chamado Problema do Colapso da Função de Onda em mecânica quântica, sendo um tema bastante atual de pesquisa. E na física quântica, podemos mostrar que não podemos fazer cópias de um sistema, isto é expresso pelo chamado Teorema de Não Clonagem. O fóton X foi para todo efeito, teletransportado do laboratório de Ana para o laboratório de Bruna, ou em linguagem menos precisa: deixou de existir no laboratório de Ana e apareceu no laboratório de Bruna. 

    Este processo de teletransporte, apesar de ser muito pouco intuitivo  foram observados em experimentos, com fótons e mesmo com átomos. E sua realização experimental, é sem dúvida alguma um grande trunfo indicando a validade da física quântica.

        Um prêmio Nobel sem dúvida alguma, muito merecido.

   
    

outubro 01, 2022

O Paradoxo dos gêmeos

    O chamado Paradoxo do Gêmeos, aparece com o desenvolvimento da Teoria da Relatividade, sendo que talvez a primeira versão que discute a questão de duas pessoas viajando e apresentando diferenças na idades  é um artigo de Paul Langevin de 1911, [1] apesar de que em 1905 Einstein já discutia a ideia do tempo passar diferente para diferentes observadores (Einstein considerou o assunto "peculiar" mas não um paradoxo ) .

Figura 1. Uma representação de gêmeas, na cultura Yoruba. Fonte:The Children's Museum of Indianapolis, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15094650

    Mas o que é exatamente o "Paradoxo dos Gêmeos"? Antes de continuar, vamos deixar claro que não existe nenhum Paradoxo, se existisse seria realmente um problema para a teoria da relatividade, mas vamos utilizar o termo usual de "Paradoxo dos Gêmeos", assim o paradoxo dos gêmeos é um falso paradoxo, mas apesar disso nos permite discutir alguns conceitos importantes da física relativística. 

    Vamos considerar duas gêmeas, uma que fica na Terra  (que vamos chamar de Alice) e outra (a Bruna) que viaja pelo espaço indo da Terra para um estrela distante e depois retornando. Utilizando a teoria da relatividade, podemos demonstrar  que se a viajem de ida e volta para Bruna   tenha durado dois anos (obviamente isto depende da distância percorrida e da velocidade, mas não vamos nos preocupar com isto), na Terra teriam passado duzentos anos.  O termo paradoxo é utilizado argumentando que como o movimento é relativo, poderíamos considerar que a gêmea na Terra (Alice) se afastou e depois voltou, portanto do ponto de vista de Bruna o processo deveria ser o inverso do descrito acima: o tempo para Alice deveria ser menor que a de Bruna!

    O raciocínio acima assume uma simetria na situação,  o que não ocorre de verdade, de forma que o paradoxo não existe. 

Figura 2. A viagem das gêmeas (diagrama com escala arbitrária).

    Na figura 2 representamos em um diagrama espaço-tempo a situação da viagem de Bruna (em vermelho) e a situação de Alice (linha vertical em preto) que está parada no referencial da Terra. Notemos que o desenho não é simétrico. O eixo horizontal representa a distância e o eixo vertical o tempo, no sistema de referência de Alice. Se considerarmos apenas referencias inerciais, Bruna necessitaria de DOIS referencias inerciais enquanto Alice de apenas UM, o que indica que o problema não é simétrico.

    Para explicar o paradoxo, duas respostas muito populares são

  • A existência de aceleração (no caso de Bruna que precisa acelerar para sair da Terra, acelerar para fazer o retorno e voltar para a Terra e novamente acelerar para reduzir para poder parar na Terra. 
  • A necessidade de utilizar a Relatividade Geral para resolver de forma completa o paradoxo .
As explicações são razoáveis, e de fato quando consideramos estas condições, conseguimos entender as diferenças nos intervalos de tempos que são mensuradas. Mas exitem situações sem a presença da gravitação e sem aceleração onde ocorrem estas diferenças nos intervalos temporais! 

    Então teríamos outras explicações? As explicações utilizando sistemas acelerados e a relatividade geral, não estão erradas! Elas podem ser aplicadas e conseguem descrever corretamente os efeitos do Paradoxo dos Gêmeos. No entanto, por não poderem ser utilizados para explicar situações sem aceleração ou presença da gravitação, devem ser entendidos como explicações para situações particulares [2].
    
   Na física newtoniana eventos que são simultâneos (isto é que ocorrem no mesmo instante do tempo), são simultâneos para todos os observadores, isto porque com a noção de tempo absoluto, podemos criar um padrão para a medida de tempo que é a mesma para todos os observadores. Mas não existe um padrão de distância que vale para todos os observadores na física newtoniana, independente do seu estado de movimento? Sim, existe. Então qual a diferença, porque não dizemos que o espaço é absoluto também? Basicamente porque mesmo em movimento, como o tempo é absoluto (o mesmo para todos os observadores), isto nos permite transferir o padrão de medida no espaço de um observador a outro. É importante perceber que a medida da posição depende do observador (o referencial utilizado). Imagine um carro andando em uma estrada, e que você esteja dentro do carro. Para um observador externo, o carro (e você e tudo que esteja dentro do carro), terá posições diferentes em cada instante do tempo. Mas para o seu referencial (que é o carro), dentro do carro nada se move, tudo está parado um relação ao outro dento do carro, logo as posições em relação ao referencial do carro não mudam com o tempo. A existência de  um tempo absoluto nos permite SINCRONIZAR todos os relógios (instantes de tempo) existentes no espaço, independente do seu estado de movimento. E com isto podemos passar o padrão de distância de um observador a outro, sem nenhum problema [3].

     Na física relativística, a noção de tempo absoluto utilizado na física newtoniana, deixa de ser válida, isto implica que o processo de sincronização deve ser alterado, pois não temos um padrão de tempo que possa ser utilizada por todos os observadores. Nesta situação, é importante que sejam estabelecidos para cada evento, o instante de tempo e a posição da ocorrência do evento. E para fazermos isto, precisamos ter um processo de calibração e definição um padrão que possa ser utilizado por todos os observadores. E este padrão inclui o tempo e o espaço, o que justifica a introdução do conceito de espaço-tempo [4].Utilizamos uma grandeza que denominamos intervalo espaço-temporal, mas não vamos nos alongar neste assunto. O que importa é que podemos construir um padrão (que envolve o tempo e o espaço) que é o mesmo para todos os observadores, independente do seu estado de movimento. A necessidade de construirmos um espaço-tempo, decorre da Teoria da Relatividade (para uma discussão sobre a Teoria da Relatividade , um bom local para procurar sobre o tema é o site do CREF, por exemplo este texto ou este texto entre vários outros indicados nos links do CREF, mas se desejar um livro, existem muitos excelentes textos, um que particularmente gosto muito é Spacetime Physics , de E. Taylor e J.A. Wheeler, um outro livo interessante é  Flat and Curved Space-Times , de G. Ellis ).

    Quando este processo de sincronização é realizado para diferentes observadores, em alguns casos o processo não pode ser realizado de forma unívoca! Por exemplo em uma trajetória de ida e volta, se imaginarmos como um círculo, não conseguimos sincronizar de forma única todos os relógios em cada ponto localizados no círculo (note que neste caso, por estar em movimento circular, em cada posição temos um referencial inercial diferente, e existe portanto um aceleração no sentido newtoniano).  Uma outra situação na qual ocorre o paradoxo dos gêmeos, é em um espaço periódico ou em espaços denominamos compacto. Se você já jogou um vídeo game  no qual um objeto sai de um lado de uma tela (digamos na direita) e aparece na esquerda, este seria um exemplo de espaço compacto: dizemos que o lado esquerdo da tela está identificado com o lado direito da tela. Neste caso se considerarmos uma das gêmeas parada (Alice)  e a outra gêmea (Bruna) com movimento horizontal, as duas irão se encontrar periodicamente. E não existe aceleração, ambas as gêmeas estão com velocidade constante (uma com velocidade zero e outra com velocidade diferente de zero). Em um diagrama espaço-tempo, o movimento de Alice é uma reta vertical e a de Bruna segmentos de reta, que ao atingir  o lado direito da tela, reaparece no lado esquerdo da tela.

Figura 3. Trajetórias de Alice e Bruna no espaço-tempo (diagrama com escala arbitrária).

    Na figura 3 representamos as trajetórias de Alice (em azul e na vertical) e Bruna (em vermelho e inclinado) em um diagrama espaço-tempo em um espaço compacto de largura L. Note que Bruna ao atingir o lado direito da tela, reaparece no lado esquerdo da tela, e mantém a mesma inclinação (a mesma velocidade). Quando analisamos esta situação, obtemos o mesmo efeito do paradoxo dos gêmeos para o caso de uma viagem de ida e volta com aceleração nos trechos, mas agora devido ao tipo de espaço utilizado podemos realizar uma ida e volta sem aceleração e em um espaço sem curvatura (para quem tiver interesse em mais detalhes, recomendo olhar este artigo  1973 ou o artigo do Luminet indicado em [2]. Compare com atenção a diferença entre a figura 1 e a figura 2. Note que na figura 1, para Bruna voltar ela precisa mudar a sua direção de movimento, enquanto no caso 2 isto não é necessário, devido ao tipo de espaço utilizado.

    Assim o chamado paradoxo dos gêmeos não ocorre devido a aceleração ou a necessidade de utilizar a relatividade geral, mas sim devido as características do espaço-tempo e  o processo de sincronização dos relógios. 

Notas

[1]O trecho do artigo de Langevin, que trata do tema, é "For this it is sufficient that our travelr consents to be locked in a projectile that would be launched from Earth with a velocity sufficiently close to that of light but lower, which is physically possible, while arranging an encounter with, for example, a star that happens after one year of the traveler's life, and which sends him back to Earth with the same velocity. Returned to Earth he has aged two years, then he leaves his ark and finds our world two hundred years older, if his velocity remained in the range of only one twenty-thousandth less than the velocity of light. The most established experimental facts of physics allow us to assert that this would actually be so."


[2] Existem textos muito interessantes que tratam do paradoxo do gêmeos. Eu indicaria os seguintes textos : R. Perrin,  Twin paradox: A complete treatment from the point of view of each twin, American Journal of Physics 47, 317 (1979); https://doi.org/10.1119/1.11835 e JP, Luminet, Time, Topology and the Twin Paradox, acesso livre em https://arxiv.org/pdf/0910.5847.pdf

[3] Depende também da possibilidade de passar a informação de forma instantânea de um observador a outro. 

[4]Na física newtoniana, o espaço e o tempo podem ser tratadas como separadas, e enquanto a noção de espaço absoluta é abandonada (na formulação original de Newton, ele utiliza uma noção de espaço-absoluto), a noção do tempo continua sendo absoluto, de forma que podemos falar de espaço e tempo como entidades separadas.  Um livro interessante sobre o assunto é Philoshophy of Physics: Space and Time de Tim Maudin, publicado pela Princeton Univertisy Press ou o livro The Phiosphy of Spaxce and Time, de Hans Reichenbach, mais antigo e publicado pela Dover .