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setembro 17, 2024

Lentes Gravitacionais

     

Fonte 1: Registro do efeito das Lentes Gravitacionais, os arcos de luz são imagens distorcidas de galáxias distantes. Fonte: NASA 

    A chamada Lente Gravitacional tem origem no fenômeno da deflexão da luz [1] devido ao campo gravitacional de um corpo (a lente) com massa M. Esta deflexão da luz foi inicialmente prevista com a utilização da Gravitação Newtoniana, e foi calculado pela primeira vez por J. Soldner em 1801.  Isto pode ser uma surpresa para algumas pessoas, pois é comum associar este fenômeno com a Teoria da Relatividade Geral desenvolvida por Albert Einstein em 1917. A primeira observação da deflexão da luz pelo Sol foi realizada durante um eclipse solar em Sobral, no interior do Ceará em 1919, e as observações  confirmaram a existência da deflexão da luz pelo Sol e com um valor compatível com a previsão da Relatividade Geral, descartando o valor obtido com a utilização da Gravitação Newtoniana [2]. 

    Utilizando o efeito da deflexão da luz é possível demonstrar que um objeto massivo funcione como uma lente gravitacional [3]. Isto ocorre porque a presença de um corpo massivo curva o espaço tempo ao seu redor,  de forma que  o caminho que a luz percorre sofre um desvio da linha reta, que seria esperado na ausência da massa. Na figura 2 apresentamos uma representação esquemática de uma Lente Gravitacional, sendo a fonte e a lente pontuais (figura não está em escala).


Figura 2. Representação esquemática de uma lente gravitacional. Fonte Wikipedia

    Uma lente gravitacional pode ser resultado da ação de qualquer objeto com massa, e o ângulo de deflexão ( o ângulo $ \alpha $ na figura 2) aumenta com a massa ($ \alpha  \propto \sqrt{M} $) . E quanto mais próximo do objeto ( a distância b na figura 2), maior o ângulo de deflexão. E a massa não precisa ser pontual, permitindo  que galáxias e seus aglomerados possam atuar como uma lente gravitacional. As imagens formadas dependem da posição (incluindo as distâncias)  da fonte, da distribuição de massa do objeto que atua como uma Lente Gravitacional,  Na figura 3, apresentamos no lado esquerdo uma imagem em forma de anel quase completo (compare com a figura 1) e do lado direito quatro imagem de um mesmo objeto, formando uma cruz.


Figura 3. No lado esquerdo o Anel de Einstein e no lado direito a Cruz de Einstein, que são dois tipos de imagens que podem ser produzidas por lentes gravitacionais. Fonte ESO
    
      

    Este efeito não depende do comprimento de onda, de forma que uma lente gravitacional é acromática, que é diferente do caso de uma lente comum (digamos de vidro) na qual o ângulo de deflexão depende do comprimento de onda. Isto ocorre porque no caso do vidro (figura 4), o meio que é responsável pela deflexão é dispersivo, isto é o índice de refração (consequentemente o ângulo de deflexão) vai depender do comprimento de onda, logo as diferentes cores sofrem desvios diferentes. Mas no caso da lente gravitacional é a curvatura do espaço-tempo que causa a deflexão, e isto não depende do comprimento de onda da luz, que torna o processo acromático [4]. 


   

Figura 4. Aberração cromática em uma lente. Fonte By DrBob at the English-language Wikipedia, CC BY SA3.0, wikipedia 

    Devido ao fato da deflexão da luz não depender do seu comprimento de onda, podemos utilizar o espectro obtido para determinar a distância da fonte até o observador, usando a relação entre o chamado redshift cosmológico e a distância. As imagens produzidas por lentes gravitacionais nos permitem estudar a distribuição de massa (incluindo a matéria escura)  de objetos que atuam como uma Lente Gravitacional, detectar objetos que possuem baixa luminosidade. pois as Lentes Gravitacionais amplificam a luminosidade).  

    Efeitos de Lente Gravitacional com estrelas em nossa Galáxia dificilmente podem ser observadas - em particular nosso Sol não produz efeito de Lente Gravitacional que seja possível de ser detectado na Terra, de forma que o que podemos observar são os efeitos de Lente Gravitacional de objetos fora de nossa Galáxia. Este fato   nos permite utilizar estes efeitos também como uma ferramenta de estudo em Cosmologia; Os efeitos de múltiplas Lentes Gravitacionais, flutuações  no brilho de objetos distantes , observações  de galáxias de baixa luminosidade, distribuição de matéria escura, e outros estudos podem ser realizados com a utilização da Lentes Gravitacionais [5] e estes resultados são excelentes testes observacionais na área de Cosmologia. 

    Sendo acromática,  implica que no estudo de lentes gravitacionais ( excluindo o efeito do meio na qual a luz está propagando) podemos sempre utilizar a ótica geométrica? Isto é, desconsiderar as propriedades ondulatórias da luz? A rigor não podemos. Consideremos dois feixes de luz emitidos de regiões muito próximas da fonte. Este feixe sofre a ação de uma lente gravitacional, sendo posteriormente detectada. Dependendo da situação, estes dois feixes são coerentes, de forma que ao serem observados, a princípio é esperado a presença de difração, que é um efeito devido a característica ondulatória da luz. No entanto as condições necessárias para que estes efeitos  sejam observados são muito restritivos, de forma que na prática a aproximação de ótica geométrica no estudo de lentes gravitacionais é perfeitamente adequada, pois com os equipamentos  existentes estes efeitos difrativos não são atualmente possíveis de serem detectados.  



    

Notas

[1] A deflexão ocorre para todos os comprimentos de  onda, mas é comum utilizar o termo luz no sentido mais genérico de ondas eletromagnéticas, e neste texto vamos seguir este padrão. 

[2] Em relação ao valor previsto pela Gravitação Newtoniana é $  \alpha = 0,87  $ segundos de arco,  que é  a  metade do valor previsto pela Relatividade Geral.  Uma informação interessante é que Einstein em 1911 (portanto antes da elaboração da Relatividade Geral), apresentou uma estimativa para a delflexão da luz semelhante ao obtido com a Gravitação Newtoniana. Sobre a expedição em Sobral, ver  por exemplo   Do Eclipse Solar de 1919 ao Espetáculo das Lentes Gravitacionais  de JAS Lima e RC Santos. 

[3] No livro Gravitational Lenses (1992) , P Schneider, J. Ehlers, E.E. Falco,   os autores citam que a primeira utilização do termo "lente gravitacional" foi devido a O. Lodge em 1919, mas no sentido negativo, isto é de que não existiriam as lentes gravitacionais. Ressaltamos que não devemos simplesmente utilizar os conceitos de uma lente ótica para uma lente gravitacional, uma diferença importante sendo que na lente gravitacional, não existe um ponto focal, que é um dos argumentos utilizado por Lodge "it is not permissible to say that the solar gravitational field acts like a lens, for it has no focal lenght" (o artigo pode ser acessado aqui ). Na Lente Gravitacional ao invés de um ponto focal, possuímos uma linha focal.  


[4]  Isto implica que eventuais efeitos dispersivos que venham a ocorrer estão relacionados com o meio pela qual a luz percorre até atingir o observador, não sendo devido ao fenômeno da Lente Gravitacional.  No caso de fontes extensas como as galáxias, as diferentes regiões podem possuir espectros de emissão distintos, e devido ao fato de ser extenso, estas diferentes partes sofrem desvios distintos pela Lente Gravitacional, mas esta diferença é devido a diferença nos ângulos de incidência ( por exemplo os ângulo $ \theta $ na figura 2) e não devido ao comprimento de onda da radiação.


[5] Para um texto não técnico, ver por exemplo  Gravitational lensing: a unique probe of dark matter and dark energy , que é um texto não técnico de RS. Ellis, publicado em 2010..  

setembro 03, 2022

Censura cósmica

     

    Censura cósmica? Seria alguém ou alguma misteriosa instituição proibindo a divulgação de segredos do Universo?  Uma teoria de conspiração cósmica? Não, não. A Censura Cósmica é uma conjectura da física, que diz que o Universo não permite a formação de singularidades nuas. Mas, o que seriam as singularidades nuas.

     Bem, vamos seguir o conselho do Rei ao Coelho Branco  e começar pelo começo.

    O termo censura cósmica foi apresentado por Roger Penrose (prêmio Nobel de Física em 2020) em 1969, aplicado ao estudo de soluções da Relatividade Geral, em particular de buracos negros.  Neste artigo, após uma discussão sobre o colapso gravitacional, Penrose traz a pergunta [1]

  Será que existe um censor cósmico que proíbe o surgimento de singularidades nuas, vestindo cada uma (das singularidades) com um horizonte de evento absoluto? 

    Singularidade na Relatividade Geral ocorre em duas situações:  (1) a curvatura do espaço-tempo diverge (ou seja se torna muito grande e sem limite) (2) ou quando um caminho (dizemos uma geodésica) no espaço-tempo não pode estendida além de um certo tempo (próprio) ou dito de forma não tão  precisa: uma trajetória "acaba" em um ponto no espaço-tempo.  Imagine a trajetória de uma pessoa no espaço, e após um tempo finito a pessoa simplesmente desaparece no espaço-tempo. O trabalho de Roger Penrose, discute este segundo tipo de singularidade. Em alguns casos as duas singularidades são descrições de uma mesma situação, mas não é algo necessário.

    Em um buraco negro, temos a formação de uma singularidade.  Um buraco negro é formado quando uma certa quantidade de massa ocupa uma região muito pequena, ou melhor colapsa em um único ponto.  Algumas estrelas com massas maiores que  a do Sol, ao final da sua vida se transformam em buracos negros, e este processo de formação é relativamente bem conhecido e compatível com os dados observacionais. No centro de muitas galáxias, existem buracos negros super massivos, com massas da ordem de bilhões de  massas solares, mas o mecanismo exato de como formam ainda não é bem estabelecido.  Além dos dois tipos acima, teoricamente podem existir buracos negros com massas menores (os buracos negros primordiais)  e que talvez tenham sido produzidos no início do Universo, mas estes ainda não foram detectados, ao contrário dos dois primeiros tipos, que tem sido detectados com certa frequência no Universo.  Independente do tipo de buraco negro,  se for possível comprimir uma certa quantidade de massa continuamente, ao atingir um certo tamanho, está massa acaba gerando  um buraco negro.

    E como poderíamos comprimir? No caso de objetos com massa muito grande, quem faz este processo é a gravidade. Mas nem toda massa que é comprimida  pela gravidade vira  um buraco negro. Isto ocorre porque além da gravitação, existem outras forças na natureza. E dependendo da massa, diferentes processos podem ser responsáveis para evitar o colapso completo do objeto (exemplos são os planetas e as estrelas como as anãs brancas ou as estrelas de nêutrons),  mas existe um limite a partir da qual, a gravidade é tão intensa, que  o colapso final é inevitável.  Isto significa que toda massa vai ficar concentrado em uma região muito pequena!! Utilizando a gravitação clássica, a região seria um ponto: toda massa seria comprimida em um único ponto no espaço.

    Este colapso completo, forma o que é denominado singularidade. A existência de singularidade nas soluções da Relatividade Geral eram bem conhecidas, mas devido a dificuldades em obter soluções gerais, as situações que apresentavam singularidade exigem um alto grau de simetria. E a grande dúvida, era se as singularidade sobreviveriam em condições de perda de simetria, pois na natureza os objetos não possuem a simetria exata impostas para as obtenção das soluções exatas. Roger Penrose demonstrou que sob condições extremamente gerais, a formação de uma singularidade é inevitável, ou seja, não dependem da simetria imposta para a obtenção das soluções da Relatividade Geral.  É importante ressaltar que os trabalhos não mostram que a formação de um buraco negro é inevitável,  pois um buraco negro é muito mais que uma singularidade no espaço-tempo. É necessário ter um horizonte de eventos. O Horizonte de Eventos é uma  superfície que delimita duas regiões no espaço-tempo. E qualquer objeto que esteja dentro  da região delimitada pelo Horizonte de Eventos, não pode mais retornar para fora da região.

Figura 1. Representação esquemática do colapso gravitacional (Fonte: [2] )

    Estas singularidades sem a presença de um horizonte de eventos, seria no mínimo embaraçoso para a física. Por que? Significaria uma região com densidade infinita (possivelmente, nestas escalas muito pequenas, efeitos quânticos devem impedir este colapso em um um ponto, mas ainda não sabemos ) e isto ainda não sabemos como tratar com a nossa atual etapa de conhecimento. Mas talvez um problema mais sério é de que perdemos a capacidade de determinar com precisão a evolução de um sistema, pois não conseguimos determinar as condições de contorno na singularidade. De uma maneira simples, uma condição de contorno nos informa qual ou quais os valores que uma grandeza deve possuir em uma certa região. Um exemplos cotidiano é uma panela com água que colocamos para aquecer no fogão: uma das condições de contorno é a quantidade de energia ("a temperatura da boca do fogão") que é fornecida na parte inferior da panela. Se você costuma tocar violão, quando você afina cada corda, (aumentando ou diminuindo a tensão nas tarraxas) esta  modificando as condições de contorno. Se existisse uma "singularidade" nas tarraxas, não teria como afinar seu violão!

    No caso de um buraco negro, a existência da singularidade deixa de ser um problema sério, pelo menos para quem está fora do horizonte de eventos.  É como se ao varrer uma sala, todo lixo fosse colocado para baixo do tapete. Ou seja, se não levantarmos o tapete, a sujeita não será visível. Mas a sujeira continua a existir. E justamente por esta possibilidade, que Roger Penrose levantou a questão se existiria ou não algo como uma "censura cósmica" que levaria a formação de um horizonte de eventos SEMPRE que surgisse uma singularidade no Universo. Uma singularidade estaria sempre  associada à um horizonte de eventos, isto é, sempre estaria "vestida" e assim não seria possível observar uma singularidade "nua".

    No entanto, são conhecidas soluções que não possuem Horizonte de Eventos, por exemplo no caso dos chamados buracos negros extremos. Neste caso temos um buraco negro carregado com sua máxima carga possível, e podemos mostrar que não ocorre a formação do horizonte de eventos. Existem outras soluções que violam a censura cósmica, mas são ainda soluções muito particulares e que dificilmente existiriam na natureza.

    Atualmente não temos nenhuma informação observacional da existência de uma singularidade nua no Universo. Isto naturalmente não implica que não existam   as singularidades nuas, talvez seja apenas uma dificuldade de entender O QUE seria observado SE existir uma singularidade nua, ou que nossos equipamentos ainda não sejam suficientemente sensíveis para a detecção de eventuais singularidades nuas. Mas uma outra possibilidade, é a de que com  a inclusão de efeitos quânticos evitem a formação de singularidades no espaço-tempo não seja permitida e que a existência de singularidade nas soluções da Relatividade Geral seja  um dos indícios da necessidade de uma teoria de gravitação quântica. 

    

   Referências e notas

[1] O trecho completo sendo 

"We are thus presented with what is perhaps the most fundamental unanswered question of general-relativistic collapse theory, namely: does there exist a “cosmic censor” who forbids the appearance of naked singularities, clothing each one in an absolute event horizon? In one sense, a “cosmic censor” can be shown not to exist. For it follows from a theorem of Hawking [19] that the “big bang” singularity is, in principle, observable. But it is not known whether singularities observable from outside will ever arise in a generic collapse which starts off from a perfectly reasonable nonsingular initial state. Ver em  R. Penrose, Gravitational Collapse: the Role of General Relativity, Rivista del Nuovo Cimento, Numero Speziale I, 252 (1969), republicado em Penrose, R. “Golden Oldie”: Gravitational Collapse: The Role of General Relativity. General Relativity and Gravitation 34, 1141–1165 (2002),  https://doi.org/10.1023/A:1016578408204


[2] S. Hawking e G. Ellis, Large Sacle Structure os Space-time, Cambridge University Press, 1973

janeiro 10, 2022

O Elevador de Einstein em uma garrafa de água

     O elevador de Einstein é uma construção mental extremamente interessante,  e de acordo com o próprio Einstein, foi fundamental para o desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral, e nas palavras de Einstein  foi "o pensamento mais feliz da minha vida " [1].  Ele imaginou a situação  de uma pessoa  caindo do telhado de uma casa e sua percepção dos fenômenos físicos durante a queda. Este experimento mental, expressa um fato observacional importante: a de que todos os corpos caem com a mesma aceleração na presença de um campo gravitacional (devemos considerar uma situação onde o atrito com o ar é desprezível, veja o excelente video do Brian Cox [2], comparando a queda de uma bola de boliche e um conjunto de penas, em um ambiente com atrito reduzido com o ar). Sobre o Elevador de Einstein,  vamos considerar duas situações, que descrevo a seguir.

    Na primeira situação vamos considerar que uma pessoa  aqui na superfície da Terra,  em um laboratório sem absolutamente nenhuma visão para fora. Para manter uma tradição entre os físicos, vamos chamar esta pessoa de Alice. Em seu laboratório, ela realiza diversos experimentos de física, e em um experimento de queda livre de um corpo, mede a  aceleração durante a queda, obtendo o valor igual a $g=9,81 m/s^2$. Alice precisa determinar se  esta aceleração é devido a existência de um campo gravitacional ou é devido a estar em um foguete  acelerado em relação a um referencial inercial.  Mas Alice não consegue decidir fazendo apenas experimentos locais, independente do experimento que realize.

    Agora vamos mudar para uma outra pessoa (e para manter a tradição da física, será  o Bob) em um laboratório igualmente sem visão para fora, mas  localizado distante de qualquer outro objeto, no espaço.  Outra condição é que este laboratório esteja acelerado (é um laboratório foguete, e com os motores ligados), com aceleração igual a g. Neste laboratório, Bob executa diversos experimentos de física, e em experimentos de queda livre observa que todos os objetos possuem uma mesma aceleração igual a $g=9,81m/s^2$.  Bob, como a Alice, precisa determinar se  esta aceleração é devido a existência de um campo gravitacional ou é devido a estar em um foguete  acelerado em relação a um referencial inercial.  Mas Bob não consegue decidir fazendo apenas experimentos locais, independente do experimento que realize.

    Nesta  primeira situação, ambos não conseguem concluir se estão na presença de um campo gravitacional ou no espaço distante, em um foguete acelerado. Nenhum experimento local vai poder dizer se é um caso ou outro.

    Na segunda situação,  o laboratório foguete de Bob, ainda longe de qualquer outro objeto, ficou sem combustível e não está mais acelerado. Nesta situação, o laboratório foguete se comporta como um referencial inercial perfeito: um objeto deixado inicialmente em repouso, continuará em repouso, até que seja aplicado uma força externa.  E agora ao soltar um objeto, ele não cai. Será que Bob pode afirmar com certeza que está em um foguete com motores desligados e longe de qualquer objeto que gere um campo gravitacional? Ou Bob deve afirmar que está em queda livre nas proximidades de um corpo massivo?

    E Alice? Bem, o laboratório dela, que na verdade está dentro de um poço e preso no teto por  cabos de aço, por um infeliz problema, começa a cair do andar que estava (os cabos de aço se romperam). Alice que estava repousando, acorda durante a queda e percebe ao soltar um objeto, que  ele não cai em direção ao chão, como acontecia. Ainda sem saber que o laboratório estava em queda livre, ela conclui que está em um ambiente sem gravidade!  E os objetos que estão parados, continuam parados em seus locais.  Para Alice, ela está em um referencial longe de qualquer outro objeto, em um referencial realmente inercial! (Ela prefere não pensar na situação trágica de seu laboratório estar caindo , pobre Alice)

    Nesta segunda situação, tanto Alice como Bob, concluem estar em um referencial inercial.  E qualquer experimento local que realizem dentro do laboratório, não poderá dizer se o laboratório está em queda livre em um campo gravitacional (Alice) ou no espaço longe de qualquer outro objeto em um foguete não acelerado (Bob).  Nenhum experimento vai poder dizer  se é um caso ou o outro. A única coisa que sabem é que localmente, o seu laboratório é um referencial inercial.  

    Considerando as duas situações apresentadas acima, Einstein considerou importante que ao escrever uma  lei da física, ela não deveria depender do sistema de referencias escolhido. As leis  devem ser as mesmas em qualquer referencial, seja inercial ou não.  Foi a partir desta construção mental,  que permitiu a Einstein começar a elaborar a Teoria Geral da Relatividade. Ele procurou uma forma de obter as equações que descrevem os fenômenos físicos, em uma forma que não dependia do tipo de sistema de referências escolhido, seja um referencial inercial ou não. Quem lembra das aulas de física, ao serem apresentados  às leis de Newton, o inicio deve ter sido algo como "dado um referencial inercial ...". Isto é, um tipo particular de referencial é escolhido. A Teoria da Relatividade Geral, não começa com uma escolha particular de referencial. Ela é escrita de forma a ser válida em qualquer referencial [3].    

    Antes de continuarmos, é preciso fazer uma observação importante, de que  a equivalência exata entre um referencial acelerado e um referencial fixo em um local com campo gravitacional, só ocorre em uma situação muito particular e artificial: um campo gravitacional homogêneo. Mas o que  significa ser homogêneo? Significa que em qualquer ponto que escolhermos, o campo gravitacional deve ser o mesmo, em sentido, direção e módulo (intensidade). No caso da Terra, ou qualquer outro objeto real, isto não ocorre. Mas isto não invalida o experimento mental do elevador de Einstein, pois um termo importante que é utilizado é o termo "experimento local", que significa basicamente "uma região suficientemente pequena" [4].  No exemplo de Alice que está em queda livre, se ela realizar um experimento que compara com muita precisão o campo gravitacional em dois pontos distantes, ela irá notar que existem diferenças e poderá concluir corretamente que está na presença de um campo gravitacional e que ela está em queda livre. Esta ressalva é importante,  pois no caso de Alice em queda livre, o campo gravitacional não sumiu, ela é a responsável pela queda livre. O que ela vai medir é que os objetos não tem peso no seu laboratório em queda livre, que é diferente de afirmar que não existe campo gravitacional. Podemos imaginar que uma terceira pessoa (que vamos chamar de Charles), longe de Alice e Bob, e que  observa ambos, pode dizer que Alice está na presença de um campo gravitacional, e que Bob não está na presença de um campo gravitacional. Isto porque o campo gravitacional  é real, e vai existir independente do tipo de movimento do observador [5]! 

    Mas qual a relação com uma garrafa com água? A relação é um experimento que pode ser feito facilmente (mas prepare uma toalha!) em casa. Pegue uma garrafa plástica , pode ser de 500 ml, 1 litro ou mais. Faça um pequeno furo na lateral inferior da garrafa. Quando enchemos a garrafa com água, o furo vai fazer com que a água saia da garrafa. Por que ela sai? A coluna da água acima do nível do furo, exerce uma pressão, que vai depender da altura do furo até a superfície livre da água. Na superfície da água,  pressão é igual a da pressão atmosférica, que é a mesma do lado de fora do buraco. Mas na parte interna, a pressão é a da pressão atmosférica acrescida da pressão devido à coluna de água, ou seja, ela é maior que a da parte externa. Esta diferença de pressão, faz com que a água saia pelo buraco. (Ah não esqueça de fazer o experimento com a garrafa SEM a tampa, caso contrário, não vai funcionar.) 

    Agora o ponto importante: a pressão da coluna de água, depende da densidade da água, da distância do buraco até a superfície superior da água e da aceleração da gravidade. Então, se fizermos o experimento em um local que não tenha campo gravitacional, não deve sair água pelo furo. Humm, mas como podemos verificar isso?  Será que necessitamos de equipamentos sofisticados para fazer o experimento? Não precisamos de nada sofisticado!  Acabamos de comentar sobre uma situação onde um objeto em queda livre, se comporta como se localmente a aceleração da gravidade fosse nula. Então, esperamos que se soltarmos a garrafa em queda livre,  no referencial da garrafa, a situação seja semelhante ao caso sem a presença da aceleração da gravidade, logo a água não deve sair pelo buraco. Será? O melhor é experimentar!  Faça o experimento em casa, ou veja este  vídeo,  onde Brian Greene demonstra o experimento [6]. Note que inicialmente com a garrafa parada  a água sai pelo furo, e  ao soltar a garrafa, logo no início da queda, a água deixa de sair do furo, como esperado! O que está acontecendo? Cada porção da água, está caindo com a mesma aceleração g, assim como o furo na garrafa (e claro a garrafa também), de forma que em relação ao referencial em queda livre,  a água e o furo, estão caindo junto! A figura 1, são fotos do experimento que fiz em casa. No lado direito é possível ver a água saindo pelo furo, enquanto a garrafa está parada e no lado direito, a garrafa em queda livre e já  não percebemos o jato saindo pelo furo.

Figura 1. O elevador de Einstein em uma garrafa de água.

    Um experimento  simples de fazer, e que demonstra um dos princípios fundamentais  da física moderna! Este princípio recebe o nome de Princípio da Equivalência. Para os físicos existe o Princípio Fraco da Equivalência e o Princípio Forte da Equivalência.  O Princípio Forte estabelece que as leis da física devem ser as mesmas em qualquer referencial, seja inercial ou não. Para quem lembrar das aulas de física na escola, deve lembrar das leis de Newton , válidas em referenciais inerciais. O Princípio forte é uma generalização, incluindo todos os tipos de referenciais. Ah, claro que podemos utilizar as leis de Newton em referenciais não inerciais, mas precisamos tomar alguns cuidados.  Utilizamos referenciais não inerciais  cotidianamente, pois a Terra não é um referencial inercial (ela translada em torno do Sol e ainda tem a rotação diurna), mas dependendo da situação, a Terra é uma aproximação muito boa de um referencial inercial. O que  vai acontecer é que, irão aparecer algumas forças que denominamos inerciais (alguns textos utilizam forças fictícias).  Em situações onde as forças inerciais são muito pequenas, elas podem ser desprezadas e a Terra pode ser considerada como um referencial inercial.  Um exemplo de força  inercial é a força CENTRÍFUGA, que somente aparece em referencias não inerciais. Para uma discussão interessante sobre força centrífuga, recomendo visitar https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=forca-inercial-centrifuga . Aliás, o CREF [7] é um sítio que vale sempre a pena visitar.  

        O Princípio Fraco da Equivalência, estabelece a igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional. Mas  o que seria massa gravitacional??? A massa inercial é aquela que aprendemos nas aulas de física, é a grandeza relacionado com a inércia de um objeto (é comum associar a massa inercial com a medida da quantidade de matéria, mas isto não é muito correto, pois existem situações onde existe algo semelhante a inercia mas não tem matéria!). E a massa gravitacional é uma grandeza física que representa como um objeto responde à presença de um campo gravitacional, e a rigor não é a  mesma coisa que a massa inercial.  A massa inercial aparece quando escrevemos por exemplo a segunda lei de Newton , onde a força resultante é definida como o produto da massa inercial pela aceleração.  A massa gravitacional aparece quando colocamos um objeto em um campo gravitacional. Lembram quando escrevemos a equação do peso, como $ P=mg,$ onde $g$ é a aceleração da gravidade? A massa que aparece na equação é a massa gravitacional e não  a massa inercial. Confuso? Se você lembrar das aulas de eletricidade, deve lembrar da lei de Coulomb. Na presença de um campo elétrico $E$, a força que o campo elétrico exerce em um corpo com carga elétrica $q$, é escrita como $ F= q E$. A carga elétrica é a grandeza que nos diz como o objeto reage na presença de um campo elétrico, e de maneira análoga a massa gravitacional é como o objeto reage  na presença de um campo gravitacional. Seria algo como a "carga gravitacional".  O grande mistério da física é por que a massa inercial é igual à carga gravitacional (ou massa gravitacional). Esta igualdade faz com que a aceleração dos objetos em queda livre, seja sempre a mesma, independente da sua massa inercial!

    O Princípio da Equivalência tem sido testado muito, e até o momento não  existem resultados robustos que mostrem que o Princípio esteja errado. Existem experimentos ou observações realizados com grandes objetos - como as estrelas e buracos negros, galáxias - ou objetos menores como átomos, nêutrons e mesmo neutrinos e o Princípio da Equivalência tem sido comprovado em todos os experimentos e observações. Experimentos recentes realizados no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), indicaram que a matéria e a anti-matéria (no caso prótons e anti-prótons) se comportam da mesma maneira na presença de um campo gravitacional, com um teste extremamente preciso da validade do Princípio Fraco da Equivalência [8]. 

   Existem alguns trabalhos que teoricamente fazem previsão da violação do Princípio Fraco da Equivalência, mas em situações muito extremas e que ainda não temos condições de fazer experimentos para verificar as previsões. Talvez futuramente, possamos determinar com maior precisão SE existem situações em que o Princípio pode ser violado, e fazer testes experimentais para validar as previsões. Por enquanto, desde escalas cosmológicas até escalas dos núcleos atômicos, o Princípio da Equivalência é comprovado com resultados bem robustos. Podemos continuar a brincar com nossa garrafa com água [9].

    Para um texto muito interessante sobre o Princípio da Equivalência, recomendo a leitura do artigo EINSTEIN, A FÍSICA DOS BRINQUEDOS E O PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA [10],  vale a pena a leitura!


[1] Volume 7: The Berlin Years: Writings, 1918-1921. Link em  https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol7-trans/152

[2] https://www.youtube.com/watch?v=E43-CfukEgs (video Brian Cox)

[3] Einstein comenta sobre a preferência da física newtoniana de escolher um referencial inercial, deixando claro que não podemos considerar como uma falha da física newtoniana, mas argumenta que  uma teoria  na qual qualquer referencial seja considerado equivalente, seria epistemologicamente mais satisfatória. O resultado foi a Teoria Geral da Relatividade. Ver em [1], o comentário, que é: "It should by no means be  claimed that the basically unsubstantiated preference of inertial systems over other coordinate systems constitutes an error of classical mechanics. The preference of certain sates of motion (namely, of inertial systems) in nature could be a final fact that we have to accept without being able to explain it (or reduce it to some cause). However, a theory in which all states of motion of coordinate systems are—in principle—equal has to be appreciated from an epistemological point of view as being far more satisfying. For the following consideration we want to use this equivalence as a basis under the name of "general postulate〉 principle of relativity. "

[4] O  termo "pequeno", depende da precisão dos equipamentos de medida que venha a ser utilizado. Mas não vamos nos preocupar com isso no momento.

[5]  Para quem estiver curioso, a maneira de determinar se é um referencial acelerado ou um campo gravitacional, é medindo o chamado desvio geodésico ou o efeito de maré. Esta grandeza está relacionada com a medida do campo gravitacional em dois pontos separados no espaço. Este efeito de maré NÃO pode ser eliminado em um referencial em queda livre ou qualquer outro referencial, pois está relacionando com a existência da curvatura do espaço-tempo. O desvio geodésico está relacionado com uma grandeza que denominamos tensor de curvatura de Riemann, que fornece as  informações sobre a curvatura do espaço-tempo, que é como a gravitação se manifesta de acordo com a Teoria da Relatividade Geral.

[6]https://www.youtube.com/watch?v=0jjFjC30-4A (Entrevista Brian Greene minuto 4:20 )

[7] CREF - Centro de Referência para o Ensino de Física  https://cref.if.ufrgs.br/

[8]  M.J. Borchet et all, , A 16-parts-per-trillion measurement of the antiproton-to-proton charge-mass ratio, Nature, 601,53-57, 2022. https://www.nature.com/articles/s41586-021-04203-w

[9] Existem alguns resultados observacionais que argumentam que são observados violações no Princípio Forte da Equivalência, por exemplo em observações que modelam a dinâmica de galáxias , e que favorecem uma classe de teoria denominada MOND (modelo de gravitação newtoniana modificada), mas são dados que ainda não são considerados consensuais.  E também os modelos MOND não são consensuais. Estes modelos são alternativas para a existência da matéria escura,  mas diversos dados  observacionais em diferentes situações  e modelos  teóricos robustos, favorecem a existência da matéria escura , de forma que MONDs não parece ser modelos corretos.

[10] A. Mederiros, C.F. de Mederiros, Einstein, a Física dos brinquedos e o Princípio da equivalência, Cad.Bras.Ens.Fis, v22 (3), 2005.   https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/6373/5899

 







janeiro 03, 2022

Buracos Negros tem cabelos?

     Buracos negros e cabelos? Buracos Negros  talvez seja  um daqueles objetos da física que já pertencem ao imaginário de muitas pessoas. Um buraco negro na visão simplificada é a de um objeto que tem uma gravidade tão intensa que nem a luz escapa da sua superfície, e que tudo nas  vizinhanças de um buraco negro seriam inexoravelmente capturados, acabando por cair em sua direção. Uma espécie de um super ralo espacial.  Esta visão não está completamente errada, mas  é bem incompleta e imprecisa. Se por algum motivo, nosso Sol for substituído por um buraco negro  com a mesma massa, nosso Sistema Solar  não seria mais iluminado, mas os planetas continuariam sua órbita normalmente, não sendo tragados pelo buraco negro.  Não teríamos um colapso com todos os planetas caindo em direção ao Sol!

    Mas o Sol pode virar  um buraco negro? Não, o seu futuro será a de uma estrela denominada anã branca, com raio da ordem de  7 mil km (o raio atual do Sol é um pouco menos que 700 mil km) e extremamente densa ( cerca 1 milhão de vezes mais densa que a água, isto quer dizer que um volume de 1 litro,  que para a água corresponde a cerca de 1 kilograma de massa, no caso da anã branca  teríamos 1 milhão de kilograma). As anãs brancas são objetos extremamente fascinantes, mas vamos deixar para uma outra ocasião, e retornar para os buracos negros. 

    O que caracteriza um buraco negro, é basicamente  a existência do que denominamos horizonte de eventos.  O horizonte de eventos separa o espaço em duas regiões com características bem especiais. Se algo se aproximar de um buraco negro e ultrapassar o horizonte de eventos,  não poderá mais retornar para fora, isto é, ficará preso dentro da região limitado pelo horizonte de eventos. E não conseguirá nem ficar parado, de forma que uma vez atravessado o horizonte de eventos, irá continuar a cair na direção do centro do buraco negro, em direção da singularidade central (o ponto onde toda massa da estrela ficará concentrada).  E este "algo" que atravessou o horizonte de eventos, pode ser inclusive uma onda eletromagnética, e a luz é uma onda eletromagnética. Assim, uma vez que a luz ultrapasse os limites do horizonte de eventos, não tem como voltar e sair.   Nos sabemos calcular qual o raio do horizonte de eventos, e para o caso de um objeto com a massa do Sol, este raio é da  ordem de 3km (para o caso sem rotação), e quanto maior a massa do objeto, maior será o raio do horizonte de eventos. Para quem tiver interesse, este raio  sendo calculado pela equação

$$  R_S= \frac{2 G M}{c^2} $$

onde   $G= 6,67408 \times 10^{-11} m^3 kg^ {-1} s^{-2}$  é a constante da gravitação universal, M a massa do objeto (no caso do Sol $M=1,989 \times 10^{30} kg$) e c a velocidade da luz no vácuo (valor exato de $299792458 m/s$ ou cerca de 300 mil km/s ).   O raio $R_S$  nos informa qual o tamanho que uma certa massa deve ser comprimida para formar um buraco negro. No caso do Sol, teríamos que  comprimir toda a sua massa em uma região com raio menor que 3 km! 

    O raio acima recebe o nome de raio de Schwarzchild, em homenagem a Karl Schwarzchild que foi a pessoa que obteve a  primeira solução exata da equação de Einstein, da Relatividade Geral. É uma solução que descreve o espaço-tempo de uma distribuição esfericamente simétrica e estática (que não varia no tempo) e foi apresentada no mesmo ano que Einstein publicou a sua teoria (1916). Esta solução descreve um buraco negro estático e esfericamente simétrico. (Na  época não se utilizou o termo buraco negro, que somente se tornaria comum  nos anos de 1950, possivelmente devido a utilização por John  Archibald Wheeler, ver [1] )

    Um buraco negro é assim uma previsão  das equações de Einstein da Relatividade Geral. Por ser uma equação bem complicada, conhecemos poucas soluções exatas (a que fornece o raio de Schrwarzchild  é uma destas soluções) e as mesmas  possuem simetrias muito particulares. Isto fez com que durante muito tempo, a existência de um buraco negro fosse colocado em dúvida, pois os objetos reais, não possuem as simetrias exatas como na solução de Schwarzchild (não são perfeitamente esféricos e nem estáticos). Talvez, pensavam os físicos, em situações reais, um buraco negro não seria formado. Isto até  basicamente o início dos anos de 1960, era o pensamento dominante.  Apesar de que em 1939, Oppenheimer e Snyder, já haviam demonstrado que o colapso de uma estrela, era compatível com a solução de Schwarzchild.  Mas, o que se imaginava  é que com uma descrição mais realista da matéria em colapso (a equação de estado), o processo seria interrompido antes da formação do horizonte de eventos.

    Para termos  uma ideia dos períodos de tempos envolvidos no desenvolvimento do conceito do buraco negro, lembremos que  Einstein apresentou a Teoria da Relatividade em 1916, e a denominada solução de Schwarzchild foi obtida por Karl Schwarzchild no mesmo ano e até o início dos anos de 1960, era a única solução exata conhecida e aplicável a objetos como estrelas. O buraco negro como hoje a conhecemos, não era considerado uma realidade possível, mesmo sendo uma solução correta da Teoria da Relatividade. E não existiam dados observacionais que necessitassem a utilização de uma solução como a de Schwarzchild.

    Mas a situação começa a mudar lentamente, e os  anos de 1960 são considerado como a época de ouro do estudo de buracos negros.  Os importantes  estudos de Roger Penrose e Stephern Hawking sobre os buracos negros, foram realizados neste período. Pelo conjunto destes trabalhos, Penrose recebeu em 2020 o prêmio Nobel de Física "pela descoberta  de que a formação de buracos negros é uma previsão robusta da teoria geral da relatividade", dividindo o prêmio com Reinhard Genzel and Andrea Ghez, que receberam pela descoberta de um buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea.  (Talvez Hawking também receberia o prêmio, mas infelizmente ele faleceu em 2018).  Mas outros trabalhos também foram importantes. Em 1963, o físico Roy Kerr obtém a chamada solução de Kerr, que considera o caso de um objeto em rotação, e esta solução também apresentam um horizonte de eventos (e outras propriedades que a solução de Schwarzchild não possui) e    alguns físicos iniciaram estudos mais detalhados com o que ocorreria com soluções que não tivessem a mesma simetria da solução de Schwarzchild ou de Kerr.  A conclusão foi a de que independente das condições iniciais , a evolução final tendia sempre para a solução de Schwarzchild ou de Kerr, isto é, a solução que descreve um buraco negro [1].  

     No final, os únicos parâmetros importantes são a massa, a carga elétrica e o momento angular (que está associada com a rotação do corpo), e nenhuma outra informação é necessária para descrever o buraco negro formado. Não importava a constituição do objeto, poderia ser por exemplo um objeto composto apenas de átomos de hidrogênio e outro apenas de carbono. Ao virarem um buraco negro, não haveria como dizer qual teve origem no objeto composto apenas de hidrogênio e o outro apenas de carbono ,ou qualquer outra composição, por exemplo um buraco negro formado pelo colapso de uma massa de matéria e outra de antimatéria. ! Esta situação, que não permitia determinar que objeto formou o buraco negro, foi expressa de maneira sintética alguns anos depois  na frase "buracos negros não tem cabelos".    

    Para complementar este período de ouro no estudo de buracos negros, nos anos de 1970, o primeiro objeto astronômico observado foi associado a um buraco negro, o objeto Cygnus X-1, que pertence a um sistema binário, sendo detectado pela primeira vez como uma fonte de raio X.  Assim, os buracos negros deixavam de ser uma especulação teórica, para se tornar um objeto de existência real.

    Mas as surpresas e descobertas com os buracos negros, não estava no fim. Um passo importante foi o estudo de que buracos negros em rotação, poderiam produzir partículas, com trabalhos importantes de um grupo de físicos da então URSS, em especial o grupo liderado por Yakov Borishovich  Zeldovich. Mas a grande surpresa é que, buracos negros sem rotação também poderiam produzir partículas, um resultado que foi obtido em 1974 por S. Hawking  e estes estudos levaram a proposta da chamada termodinâmica de buracos negros, com trabalhos importantes do físico Jacob Bekenstein. Os trabalhos desta área de termodinâmica de buracos negros, tem como um dos principais resultados o processo de evaporação de buracos negros, e associação da entropia com a superfície da horizonte de eventos, e consequentemente a associação de uma temperatura para o buraco negro. E  o mais importante, deu um importante impulso no estudo de fenômenos quânticos em espaços curvos.  Um dos resultados mais surpreendentes,é que quando quando consideramos fenômenos quânticos , um buraco negro pode evaporar, isto é, deixar de existir. Este processo de evaporação, ocorre com a emissão do que denominamos radiação Hawking.  Mas ela só é relevante para buracos negros com massas muito pequenas, muito menores que as massas de estrelas que podem formar buracos negros.

    Os buracos negros, hoje já deixaram de ser objetos apenas teóricos, podendo ser detectados  com frequência. Existem estimativas de que na nossa galaxia, existam entre dezenas de milhões até cerca de bilhões de buracos negros! Entre as observações de buracos negros, talvez uma das  mais espetaculares, tenha sido a da emissão de ondas gravitacionais em 2016, que detectou a colisão de um par de buracos negros. Desde desta primeira detecção, tem sido observados mais eventos comprovando a existência de buracos negros. Os dados obtidos pelos detectores de ondas gravitacionais, são compatíveis com a conjectura de que buracos negros não tem cabelos. Aqui vale um comentário importante, quando dizemos que observamos buracos negros, na verdade  estamos observado os efeitos da sua presença, pois o buraco negro propriamente dito não pode ser observado: ele não emite radiação, pelo menos os com massas típicas de estrelas ou maiores.  No caso da colisão de buracos negros, o que observamos é a emissão de ondas gravitacionais durante o processo de colisão. E dependendo dos objetos envolvidos, as ondas gravitacionais tem características específicas. E estas características que nos permite afirmar que são  buracos negros e não outros objetos.

    No entanto, isto não implica que a conjectura  de que buracos negros não tem cabelos  seja verdadeira.  Existem trabalhos  indicando a possibilidade de que um buraco negro tenha cabelos (o último trabalho publicado de S. Hawking trata deste assunto),  implicando que  buracos negros com diferentes histórias de formação, apresentem propriedades diferentes. A detecção destes detalhes,  talvez possam ser observados como sinais específicos em ondas gravitacionais, mas ainda não com os equipamentos atuais. Pois uma possível violação da conjectura de que buracos negros não tem cabelos, deve ocorrer em uma região do espectro de ondas gravitacionais, que está além das nossas capacidades atuais. O que se espera é que com o aperfeiçoamento dos detectores de ondas gravitacionais, possamos melhorar a precisão nas medidas, chegando na faixa de sensibilidade que permite verificar se buracos negros tem cabelos ou não.  Mas os buracos negros que tem sido estudados que podem violar a conjectura de que buracos negros não tem cabelos, pertencem a uma classe muito específica, por exemplo a dos buracos negros extremos, que são os menores buracos negros possíveis, dado uma certa carga elétrica e momento angular.  O que possivelmente reduz bastante a possibilidade de existirem em abundância no Universo (atualmente não se conhece exemplos de estrelas com carga elétrica diferente de zero). Talvez sejam mais comuns os buracos negros que sejam quase extremos, mas mesmo estes, devem ser bem raros. Outras possibilidades que não incluam buracos negros extremos, também tem sido estudados, mas incluem outras condições  (por exemplo, modelos específicos de matéria escura) que ainda não foram observadas.  Assim, somente com futuros estudos e observações, vamos poder verificar se buracos negros tem cabelos ou não. Por enquanto, os pentes são desnecessários. 

[1] Para quem tiver interesse em ler sobre este período,  uma recomendação é o livro Black Holes and Time Warps, de Kip Stephen Thorne, publicado em 1994. Um livro de leitura muito agradável. Thorne tmabém contribui para o livro Contato de Carl Sagan e no filme Interstellar dirigido por C. Nolan , e em 2017 dividiu o prêmio Nobel de Física  com B.C. Barish e R. Weiss "pelas contribuições decisivas para a (construção) do detector LIGO e a observação de ondas gravitacionais"). Um texto também interessante sobre a história de buracos negros  é The Black hoke fifty yerar after: Genesis of the name  de C.A.R. Herdeiro e J.P.S. Lemos