março 17, 2024

Gatos na mecânica quântica

    

 Figura 1. O Gato de Cheshire -John Tenniel - domínio público

    O gato mais popular da mecânica quântica é o de Schrodinger, mas existe um outro que apesar de não ser tão popular,  podemos dizer que tem um sorriso mais permanente. É o gato de Cheshire, um dos tantos personagens do livro Alice de Lewis Carroll.

"Bem! Muitas vezes vi um gato sem sorriso”, pensou Alice; “mas um sorriso sem gato! É a coisa mais curiosa que já vi na minha vida!” [1]

    Como seu parente mais famoso, o gato de Cheshire também aparece na mecânica quântica, mas no artigo dos autores Yakir Aharonov, Sandu Popescu, Daniel Rohrlich e  Paul Skrzypczyk,  Quantum Chesire Cats  de 2012. A ideia de forma geral seria de que na mecânica quântica uma propriedade de um objeto pode ser separado do mesmo e ter existência independente do objeto.  O Gato de Cheshire seria um exemplo, ele desaparece mas seu sorriso permanece. 

    No artigo Quantum Cheshire Cats,  os autores escrevem, [2]

Não admira que Alice esteja surpresa. Na vida real, supondo que os gatos realmente sorriam, o sorriso é uma propriedade  do gato – não faz sentido pensar em um sorriso sem gato. E isso vale para quase todos propriedades físicas.

    Os autores apresentam uma proposta de experimento utilizando um interferômetro, no qual um feixe de fótons inicial é separado em duas trajetórias distintas que posteriormente se cruzam. Na figura 2 apresentamos uma representação esquemática do efeito, na qual o fóton entra pelo lado esquerdo (representado com o Gato com Sorriso),  e passa por divisor de feixe, sendo que a polarização do fóton ( sorriso)  segue a trajetória inferior e o  fóton (gato sem o sorriso) segue a trajetória superior, no final os feixes são recombinados  resultando no fóton original (gato com sorriso).


Figura 2. Ilustração artística do efeito do Gato de Cheshire. Fonte

    Este processo depende de um procedimento denominado medida fraca, que é de forma simplificada  uma medida que interfere muito fracamente com o sistema,  não causando o chamado colapso da função de onda [1] e comparam os estados denominados pré-seleção e pós-seleção.

Figura 3. Descrição esquemática do experimento proposto em Quantum Chesire Cats 

    Na figura 3, apresentamos a descrição esquemática proposta em Quantum Chesire Cats , indicando os estado pré-seleção e pós-seleção. Neste experimento um fóton é preparado no estado pré-seleção, sendo  basicamente um estado emaranhado entre os fótons que percorrem o caminho a esquerda e a direita. Destes estados, escolhemos somente aqueles que ativam o detector superior (D1), outros sendo descartados, isto é, realizamos uma escolha posterior do que vamos examinar (por isto o nome pós-seleção).  O experimento é pensado de tal forma que apenas quando o fóton passa pelo lado esquerdo (a trajetória indicado com |L> na  região entre a pré e  a pós-seleção) o detector D1 é ativado. Até este momento temos  um sistema de interferometria sem nenhuma novidade. A diferença é quando realizamos uma  medida fraca -que é  uma medida que não produz o colapso da função de onda - entre os estados de pré e pós-seleção. Neste caso, os autores argumentam que seria possível determinar estatisticamente , por qual lado passou o fóton (quado D1 é ativado) e determinar a polarização do fóton, inserindo um detector no lado |R> . No artigo os autores demonstram que é possível detectar a polarização do fóton no caminho da direita, que NÃO é o caminho seguido pelo fóton (lembrando que apenas os casos no qual o detector D1 é ativado, são analisados). É importante ressaltar que todo processo envolve medidas fracas, sem o colapso da função de onda. 

    No artigo Observation of a quantum Cheshire Cat in a matter-wave interferometer experiment, de 2014,  Denkmayr, T., Geppert, H., Sponar, S. et al. realizaram  o experimento utilizando neutrons ao invés de fótons, e argumentam que conseguiram  demonstrar o efeito do Gato de Cheshire:,ou seja, é possível detectar o spin do neutron no caminho que o neutron não está passando, que é um resultado compatível com a proposta do artigo Quantum Chesire Cats, isto é, a propriedade spin do neutron segue um caminho distinto do caminho do  neutron.

    Existem outros experimentos que indicam a existência do efeito do Gato de Cheshire, o que indicaria mais uma consequência bem contra intuitiva da mecânica quântica, isto é, podemos separar uma propriedade do objeto, a propriedade seguindo uma trajetória e o objeto uma outra trajetória.

    Uma questão importante é de que os resultados das medidas fracas  correspondem a uma média de diversas medidas e não são consequências de medidas em sistemas individuais, o que faz com que alguns físicos considerem que não existe uma separação entre o "gato" e  o seu "sorriso".  No artigo Contextuality, coherences, and quantum Cheshire cats , os autores Jonte R Hance, Ming Ji e Holger F Hofmann, utilizam a teoria da contextualidade  da mecânica quântica (que de maneira simplificada significa que os resultados de uma medida dependem da ordem que é realizada, ou do contexto das  medidas realizadas no sistema [3]), para analisar a existência do Efeito do  Gato de Cheshire. O resultado é que [4]

"...  esclarecemos como o paradoxo quântico do gato de Cheshire deveria ser interpretado – especificamente que o argumento de que a polarização se torna “desincorporada”  (...) em última análise, apenas um sistema contextual.

    Isto implica que ao realizamos medidas de maneiras diferentes, obtemos resultados diferentes e que o Efeito do Gato de Cheshire somente ocorreria em uma situação muito específica de diferentes medidas realizadas no sistema. De forma que não seria um paradoxo real, mas consequência da propriedade de contextualidade da mecânica quântica. 

    Ainda é cedo para afirmar qual é a correta explicação para o Gato de Cheshire na mecânica quântica, mas como no caso do Gato de Schroedinger, este experimento mostra como a análise de efeitos quânticos é bem distinto do que ocorre em situações cotidianas, descritas pela física clássica, e que apesar de ser uma teoria centenária, como excelentes resultados teóricos e experimentais, muita coisa ainda precisa ser estudada. Mas é assim que caminha a ciência.


Notas e Referências



[1] No original “All right,” said the Cat; and this time it vanished quite slowly, beginning with the end of the tail, and ending with the grin, which remained some time after the rest of it had gone.
“Well! I’ve often seen a cat without a grin,” thought Alice; “but a grin without a cat! It’s the most curious thing I ever saw in my life!”,
texto disponível no Projeto Gutemberg

[2] No original, o trecho completo é  "No wonder Alice is surprised. In real life, assuming that cats do indeed grin, the grin is a property of the cat—it makes no sense to think of a grin without a cat. And this goes for almost all physical properties. Polarization is a property of photons; it makes no sense to have polarization without a photon. Yet, as we will show here, in the curious way of quantum mechanics, photon polarization may exist where there is no photon at all. At least this is the story that quantum mechanics tells via measurements on a pre- and post-selected ensemble. "

[3] Para um artigo de revisão sobre contextualidade em mecânica quântica, ver
Kochen-Specker contextuality, Costantino Budroni, Adán Cabello, Otfried Gühne, Matthias Kleinmann, and Jan-Åke Larsson, Rev. Mod. Phys. 94, 045007 – Published 19 December 2022. Com acesso livre no arxiv. Veja também A Pseudo Telepatia Quântica , publicada no Cref ou em  Fisica Sete e Meia .


[4] No artigo, o trecho completo (na conclusão) aparecer como "In this paper, we have clarified how the quantum Cheshire cat paradox should be  interpreted—specifically that the argument that the polarisation becomes ‘disembodied’ results from only considering one specific pairing of the three mutually-incompatible properties in what is ultimately just a  contextual system."

março 08, 2024

O Problema dos Três Corpos



    O chamado Problema dos Três Corpos, é uma situação na qual três corpos estão interagindo mutualmente devido a atração gravitacional. Este é um problema que não existe uma solução analítica que possa ser aplicado para o caso geral [1]. Soluções analíticas gerais somente conseguimos obter quando consideramos o movimento de dois corpos. Isto pode parecer estranho, pois quando estudamos o Sistema Solar, aprendemos que as órbitas dos planetas são elipses com o Sol em um dos focos da elipse, portanto aparentemente conhecemos as soluções analíticas para um problema com muito mais que dois corpos.

    O que ocorre é que a massa do Sol é muito maior que massa dos planetas, o que nos permite em boa aproximação considerar que cada planeta se movimenta apenas sob a influência do Sol, de forma que desconsideramos as interações entre os planetas e os movimentos planetários podem então ser considerados como elipses com o Sol em um dos seus focos.

    Mas dependendo da precisão e do período de tempo analisado, esta aproximação deixa de ser adequada. Por exemplo devido a influência dos outros planetas, Mercúrio tem uma órbita na qual o ponto mais próximo do Sol (o periélio) muda de posição de um ano a outro, e isto pode ser mensurado com bastante precisão  e o valor observado pode ser explicado em quase sua totalidade como sendo devido à influência dos outros planetas [2].

    O chamado Problema de Três Corpos ocorre quando analisamos o movimento de apenas três corpos, mesmo dentro do Sistema Solar. Por exemplo um sistema com o Sol, a Terra e a Lua, , que é talvez o Problema de Três Corpos mais antigo em estudo, possivelmente com as primeiras observações devido realizadas na Mesopotânia cerca de 3000 anos atrás  (ver por exemplo o artigo Moon-Earth-Sun: The oldest three-body problem ). Outro exemplo é a Terra, Lua e um satélite artificial. Notemos que nestes casos, a massa do terceiro corpo é muito pequena e constitui o que denominamos Problema Restrito dos Três Corpos. A rigor Sol, Terra e Lua também sofrem influências dos outros planetas, mas dependendo da precisão e do intervalo de tempo das observações/medidas estas outras influências não serão significativas. O exemplo é que podemos calcular prever com boa precisão, um movimento periódico da Lua em torno da Terra, mas é importante ressaltar que este movimento não é exatamente periódico, veja por exemplo o texto  Rotação da linha apside Terra-Lua: por que acontece?  que introduz um conceito pouco conhecido , a chamada linha de apside. 

    Para algumas situações particulares, em um Problema de Três Corpos, existem as órbitas periódicas  como o exemplo da órbita da Lua no sistema Sol-Terra-Lua. Mas existem outras características no Problema de Três Corpos que são interessantes, como a existência dos chamados Pontos de Lagrange, que são regiões nas quais as forças dos dois corpos maiores produzem uma situação de equilíbrio, isto é, a força resultante devido aos dois corpos é nula. Existem 5 pontos de Lagrange, sendo duas delas estáveis e as outras três instáveis. Ponto instável significa que uma perturbação retira o objeto (o terceiro corpo) do ponto de Lagrange, e no ponto estável , uma perturbação não retira o objeto do ponto de Lagrange. O telescópio James Webb está localizado em um dos pontos de Lagrange (em um ponto instável, conhecido como L2 ) do sistema Terra-Sol (ver figura 1).


Figura 1. Os cinco pontos de Lagrange no Sistema Sol-Terra (fonte NASA)

    

    Uma característica interessante do Problema de Três Corpos, é o resultado obtido por H. Poincaré no final do século XIX, é que o sistema apresenta o chamado comportamento caótico (para uma descrição do que é a Teoria do Caos, veja por exemplo este texto do CREF ).  Isto significa que existem configurações nas quais as órbitas dos corpos não possuem movimentos regulares, de forma que o seu comportamento a longo prazo se torna imprevisível. Esta simulação no Youtube ilustra o que ocorre nas órbitas caóticas.   


Figura 2:Ilustração das órbitas de três corpos para um sistema caótico Fonte


    O Problema de Três Corpos, mesmo após cem anos, ainda é um assunto que tem atraído atenção de pesquisadores, sejam físicos, astrônomos, ou matemáticos  ( para uma aplicação específica em física, veja [3]). O que hoje sabemos que  é um sistema que apresenta um comportamento caótico, mas que dependendo das condições iniciais pode apresentar movimentos periódicos. Mas é importante ressaltar que para observar comportamento caótico, o tempo de observação pode ser muito longo, de forma que dependendo do intervalo de tempo, o comportamento pode ser muito semelhante a um sistema regular.

     Apenas por curiosidade, no livro O Problema do Três Corpos, de Cixiun Li utilizado para produzir a série homônima, não é exatamente um Problema de Três Corpos, mas não vou adiantar o enredo para quem não leu o livro ou está esperando a série. 


Nota

[1] Solução no sentido de possuirmos uma função que descreva a posição e a velocidade de cada um dos corpos em qualquer instante do tempo. Lembrando que podemos resolver numericamente o problema.

[2] No caso de Mercúrio, o chamado avanço do periélio corresponde a cerca de 575 segundos de arco por século e boa parte deste avanço pode ser explicado devido a influência da atração gravitacional de outros planetas. Mas uma pequena parcela somente pode ser explicada utilizando a Teoria da Relatividade Geral no lugar a Gravitação Newtoniana. 


[3] Uma aplicação  do problema de Três Corpos  na astronomia, é  Restricted Problem.of Three Bodies With Newtonian+Yukawa Potencial, https://www.worldscientific.com/doi/10.1142/S021827180400492X ou em https://www.researchgate.net/publication/252081554_Restricted_Problem_of_Three_Bodies_with_Newtonian_Yukawa_Potential

março 01, 2024

Torrando pão no micro-ondas

     O aparelho de micro-ondas é um eletro doméstico extremamente útil, e diversos alimentos podem ser preparados com o mesmo, em especial é muito útil para aquecer alimentos ( ver Aquecimento da água no micro-ondas NÃO se dá por ressonância! caso queria entender como ocorre o aquecimento dos alimentos, para um artigo sobre ). Mas existem alguns alimentos que não são adequados, por exemplo aquecer um ovo, que dependendo da situação pode levar  a explosão do mesmo (ver por exemplo em Ovo explode no forno micro-ondas ) e também objeto que se possível não devem ser colocados dentro do forno micro-ondas (ver  Sobre metal no forno de micro-ondas para alguns cuidados ao utilizar metais dentro do forno micro-ondas).

    É comum utilizar o forno micro-ondas para aquecer pães que deixamos no congelador e neste caso é comum deixar por pouco tempo, cerca de 10 a 15 segundos. Caso o tempo seja maior, algumas vezes o pão fica extremamente borrachudo. E a diferença de tempo é usualmente pequena entre ficar comestível e ficar borrachudo. Isto é interessante, pois quando aquecemos o pão no forno ou em uma frigideira,  o pão não costuma ficar borrachudo. Por que isto ocorre?

    Na figura 1, mostramos no lado esquerdo uma fatia de pão de forma aquecido em uma frigideira e no lado direito o pão aquecido no forno micro-ondas. Notemos que no caso da frigideira, a parte interna não está torrada, mas no caso do forno micro-ondas a parte interna está torrada. Na foto não é possível perceber, mas na fatia aquecida com a frigideira a parte interna está macia e a parte externa crocante, no caso do micro-ondas, a parte interna está torrada e a parte que não está torrada, está bastante borachuda!


Figura 1 . No lado esquerdo a fatia aquecida no forno micro-ondas e no lado direito aquecido na frigideira.

    Um ponto importante a ser notado é que no caso do pão no micro-ondas, a parte torrada não está distribuída de forma homogênea na parte interna, devido a presença de ondas estacionárias. Isto fica mais perceptível na figura 2, com três fatias de pão de forma colocadas  uma encima da outra para aquecer no forno micro-ondas.

Figura 2. Três fatias de pão aquecidas no forno micro-ondas.


    Na figura 2 podemos perceber a parte central torrada e também que a parte superior da  terceira fatia não está torrada. Estas três fatias também apresentam uma textura muito borrachuda, resultando em um pão que não é agradável ao consumo.
    
    Por que ocorre esta diferença entre a utilização da frigideira e do forno micro-ondas? No caso do pão, a radiação de micro-ondas devido a propriedade de absorção do pão, aquece inicialmente a parte interna ( o que pode ser verificado pelo fato da parte interna ficar torrada antes da parte externa). Isto faz com que o vapor de água da parte interna seja deslocado para a superfície do pão. Mas   a temperatura externa do pão é diferente nos dois casos. No caso do micro-ondas, a temperatura é basicamente a temperatura externa (para tempos de utilizações reduzidas) e no caso da frigideira, a temperatura é muito mais alta (na parte do pão em contato com a frigideira).  Isto faz com que no caso do micro-ondas, a água por  evaporar mais lentamente (lembre que a evaporação não ocorre apenas na temperatura de ebulição, leia este artigo do Fernando Lang) acaba encharcando o pão, tornando o mesmo mais borrachudo, mas no caso da frigideira como a temperatura é mais alta, o processo de evaporação ocorre mais rapidamente e o pão não fica molhado como no caso do micro-ondas.

    O fato do pão ficar desagradável para comer quando aquecido no forno micro-ondas, é que a sua quantidade de água é menor, do que por exemplo em uma batata. Podemos cozinhar uma batata no forno micro-ondas, e ela não fica ressecada, pois a mesma contém comparativamente ao pão, muito mais água.
    
   O ideal é não aquecer o pão no forno micro-ondas, utilize uma torradeira.

Notas

Um artigo muito interessante é  Bad food and good physics: the development of domestic microwave cookeryh , Kerry Parker and Michael Vollmer 2004 Phys. Educ. 39 82. O exemplo do pão foi retirado deste artigo.

Um artigo que trata da física de alimentos, considerando com área da soft matter,  ver Soft matter food physics—the physics of food and cooking , Thomas A Vilgis 2015 Rep. Prog. Phys. 78 124602