novembro 05, 2022

Velocidade maior que a da luz

      A Teoria da Relatividade Restrita proposta em 1905 por Albert Einstein, estabeleceu o principio da constância da velocidade da luz (sobre uma discussão interessante a respeito do segundo postulado da Relatividade, recomendo este texto  Enunciado do segundo postulado da Teoria da Relatividade Restrita do Centro de Referencia Para o Ensino de Física -  CREF), e uma das sua consequências é a de que os objetos com massa diferente de zero devem ter velocidade inferior ao da luz [1]. Isto implica que não pode existir velocidades maiores que a da luz? 

     Inicialmente é importante deixar claro que quando falamos da constância da velocidade da luz, estamos falando da velocidade da luz no vácuo. Em meios materiais, a velocidade da luz é reduzida e podemos ter objetos com massa se deslocando com velocidades maiores a velocidade da luz no meio,  um exemplo é o chamado Efeito Cherenkov  [2] apresentado na figura 1. 


Figura 1. O Efeito Cherenkov em um reator (fonte: wikipedia)

    Neste efeito, partículas carregadas se deslocam com velocidades maiores que a velocidade da luz do meio, e isto causa o aparecimento de algo semelhante a uma "onda de choque" que ocorre quando um objeto se desloca no ar com velocidade maior que a do som.  A redução da velocidade da luz em meios materiais, apesar de ser um assunto interessante, não vamos tratar neste texto. Aqui  estamos interessados  sobre a existência de velocidades acima a da luz no vácuo, que são denominados movimentos superluminais. Em um texto futuro, vamos voltar a tratar da velocidade da luz em meios materiais.

    Mas é possível observar velocidades maiores que a luz no vácuo? Sim! Vamos ilustrar com alguns exemplos. Considere a figura 2, onde a linha reta inclinada (em azul)  incide em uma tela (representada por uma linha horizontal preta). O movimento da linha azul sendo na direção e sentido da flecha vermelha. No ponto que a linha encontra a tela, um ponto luminoso é produzido. Podemos mostrar que a velocidade com que o ponto se desloca na tela, depende do ângulo de incidência da linha em relação a tela (e naturalmente da velocidade a linha). 

Figura 2. Um exemplo de movimento superluminal.
   

     Apesar de detectarmos uma velocidade acima da luz, não existe nenhum objeto em movimento com velocidade superior a velocidade da luz, pois no ponto de contato em cada instante, são diferentes partes da reta incidente que toca na tela. Na figura 3, representamos a linha incidente em dois instantes de tempo diferentes, e marcamos dois pontos  na reta, indicando pelas letras A e B. A linha pontilhada indica o movimento destes pontos. Note que nos dois instantes, são pontos diferentes que tocam na tela. 

Figura 3. Ilustração de um movimento superluminal.

    Para quem apenas observa a tela, entre os dois instantes, o ponto vai deslocar da posição A para a posição B', e se utilizar esta informação para calcular a velocidade, pode obter um valor acima da luz no vácuo. Mas como não é um objeto que está se deslocando, não tem nenhuma contradição com a Teoria da Relatividade (em alguns livros de relatividade, este exemplo é apresentado como a tesoura relativística ). Um exemplo extremo neste exemplo é quando a linha incide com ângulo zero na tela: toda a tela acende simultaneamente! Lembrando que na relatividade, o conceito de simultaneidade depende do referencial utilizado, que no nosso caso, seria o referencial em repouso em relação a tela - a linha horizontal .

     Vamos analisar uma outra situação. Na figura 4 temos duas lâmpadas [2],  e estão separadas por uma distância, digamos L. Ao ligarmos o fio, a lâmpada 1 vai acender no instante t1 e a lâmpada 2 no instante t2=t1+L/c . 


Figura 4. Luzes sequencias.


    Agora  vamos imaginar que a lâmpada 1 está ligada a um fio e a lâmpada 2 em outro fio, como ilustrado na figura 5, e mantendo a distância entre as lâmpadas como L. 

Figura 5. Lâmpadas ligadas em fios separados.

  Como as duas lâmpadas agora estão ligadas em fios separados, as mesmas podem acender de forma independente, e pode ocorrer da lâmpada 1 acender no instante t1 e a lâmpada 2 em um instante t2<t1+L/c . Para um observador qualquer, ao assumir (de maneira equivocada) que as lampadas estão ligadas em série, vai medir uma velocidade maior que a da luz! Este efeito por exemplo pode ocorrer em enfeites de Natal, que possuem lâmpadas piscantes (com dois conjuntos de fios ligados de forma independente uma da outra).  Nos anos de 1970, foram observados movimentos superluminais em quasares (que são núcleos ativos de galáxias),e um modelo testado na época foi semelhante ao apresentado aqui  (o modelo tem o nome em inglês de "Christmas Tree", ou árvore de Natal).  Atualmente o modelo utilizado para a explicação do movimento superluminal observados em objetos astrofísicos, é baseado em um modelo desenvolvido inicialmente por Martin Rees, em um artigo publicado em 1967 (para quem desejar acessar o artigo é   Studies in Radio Source Structure e o link permite o acesso livre).

    Neste artigo Rees, demonstra que se uma fonte distante estiver expandindo com velocidade muito próxima da luz, aqui na Terra a expansão pode ser detectada como uma expansão superluminal, este efeito sendo decorrência direta da Teoria da Relatividade, não ocorrendo nenhum movimento REAL acima da luz, mas apenas um efeito decorrente da forma que a expansão é observada. Estes efeitos são observados nos chamados jatos relativísticos astrofísicos,  em especial nos núcleos de galáxias que contém um buraco negro massivo.  

    Desta forma, respondendo a pergunta inicial se podemos observar  movimentos superluminais no Universo, a resposta é sim.  Mas  estes movimentos superluminais, são aparentes, isto é, não são objetos que se deslocam com velocidade acima da luz! A  existência destes movimentos superluminais  não contradizem a Teoria da Relatividade.  

Notas

[1] Para quem desejar, existe uma tradução em português do artigo original de Einstein aqui .

[2] Por Argonne National Laboratory - originally posted to Flickr as Advanced Test Reactor core, Idaho National LaboratoryUploaded using F2ComButton, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=27024528


[3]A imagem das lâmpadas foram obtidas em Imagem no site Freepik .

outubro 06, 2022

Teletransporte Quântico

    O teletransporte quântico é uma das consequências  fascinantes  da física quântica, e  foi um dos temas que motivou o Prêmio Nobel de Física de 2022. Mas  o que seria o teletransporte quântico? Para quem conhece as séries e os filmes de Jornadas nas Estrelas, o nome teletransporte é bem conhecido, imortalizado na frase "Beam me up, Scotty", ou em uma versão livremente traduzida como "Dois para subir, Scotty" . Ao final da qual um objeto é teletransportado de um local a outro.  Mas seria o teletransporte quântico a mesma coisa?

    Vamos pelo começo! Para entender o significado do termo teletransporte quântico, precisamos entender alguns conceitos importantes da física quântica. Uma delas é os chamados estados emaranhados, explicado no texto  Estados Emaranhados Em Mecânica Quântica .  Estes estados foram propostos pela primeira vez, por Erwin Schroedinger, em um artigo que ele apresenta o famoso experimento mental do Gato de Schroedinger (para uma versão traduzida para o inglês, ver  aqui), no qual ele apresenta uma superposição de estados do Gato Morto e Gato Vivo, que existiria até o instante que alguém realizasse uma medida. 

    Einstein, Rosen e Podolsky  publicaram em 1935, um artigo (que pode ser acessado aqui ) onde utilizam a ideia dos estados emaranhados, para propor que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta.  Durante muitos anos, não foi possível responder de forma experimental se os argumentos de Einstein, Rosen e Podolsky seriam corretos ou não, de forma que a questão ficou por muitos anos esquecida, ou apenas como uma curiosidade. Mas nos finais dos anos de 1960, um grupo de físicos retomariam o tema e começaram a estudar com mais detalhes este assunto, em especial, os trabalhos de John Bell foram fundamentais para o ressurgimento do interesse sobre o assunto  (sobre  este assunto, uma leitura é o texto A Desiguldade de Bell   que foi publicado no blog).

    Caso não tenha ainda lido sobre o que são os estados emaranhados, vamos fazer uma rápida descrição. Imagine que você tenha dois dados (verde  e vermelho, como na figura 1), e ao jogar os dados , os números são sempre iguais em ambas as faces: se no primeiro dado aparece a face 6, no segundo também será 6 e assim para quaisquer outro número existente no dado: qualquer que seja a face que aparece no dado que foi jogado (digamos o verde) , no dado vermelho  a face resultante será a mesa. Estes dados na linguagem da mecânica quântica estão entrelaçados ou emaranhados. (Esta é uma construção simplificada, mas ajuda a entender o conceito do emaranhamento). 

Figura 1 Dados entrelaçados (adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Two_red_dice_01.svg )




    No teletransporte quântico, o que se faz  é preparar um par de dados emaranhados e enviar um dos pares para um local distante, e deixar ele guardado.  Nos experimentos, ao invés de dados, são utilizados por exemplo fótons, que são as partículas da luz. Fazendo a analogia com um dado, o fóton tem apenas "duas faces", isto é, podem resultar em "dois números", como as faces de uma moeda (cara ou coroa ou usualmente representados como  os  estados  0 e 1).  Um outro ingrediente importante para o nosso processo é a possibilidade de construir os estados de superposição, isto é, o um estado no qual o fóton está em uma combinação do estado 0 e do estado 1 (este é o famosos estado do gato de Schroedinger, que na descrição da física quântica está em um estado que é  a mistura (superposição) do gato vivo e o gato morto). 

Figura 2. Autor By Dhatfield - Own work, CC BY-SA 3.0, fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4279886


     O objetivo do teletransporte é fazer com que um fóton que esteja em um local, seja enviado para um outro local distante. Para ilustrar este processo, vamos imaginar dois laboratórios, um cuja responsável é a Ana e um outro  laboratório cujo responsável é a Bruna.  Inicialmente, quando Ana e Bruna estão juntas,  são  produzidos dois fótons que vamos denominar de A e B , e que estão em um estado emaranhado.  O fóton A sendo mantido  no laboratório de Ana e o outro fóton Bruna leva para o seu laboratório  (com cuidado para não romper o entrelaçamento).  Estes dois fótons emaranhados são peças importantes para o processo de teletransporte, e devem ser mantidos com cuidado.

     Algum tempo depois, Ana deseja enviar um fóton  (que vamos chamar de X) para Bruna. Ana não sabe em qual estado está este fóton e sendo conhecedora de mecânica quântica, sabe que  ao realizar a medida no fóton, vai obter resultados probabilísticos e não vai ser possível saber qual o estado do fóton X (que em geral será estará em um estado com a superposição dos estados 0 e 1).  Mas Ana quer que Bruna tenha o mesmo fóton X.   Como fazer para passar as informações do fóton X para Bruna, de forma que o fóton seja exatamente o X?  A resposta é: faça um teletransporte quântico.

    Para poder realizar o teletransporte, Ana deve inicialmente construir um novo estado no qual a informação do fóton X fica emaranhado com o fóton A. Como os fótons A e B estão emaranhados, ao produzir o novo estado do fóton X emaranhado com o fóton A, isto também afeta o fóton B no laboratório  de Bruna, que lembremos está distante.  Agora Ana está pronta para realizar a segunda parte do processo de teletransporte, e   neste estado emaranhado,  mede o estado do fóton A, não a do fóton X. Neste processo de medida Ana vai obter um resultado (neste caso podemos mostrar que existem quatro possibilidades, e isto decorre do fato de termos dois fótons cada um com dois possíveis estados) e este resultado deve ser enviado para Bruna. Este envio é realizado por exemplo, enviando uma mensagem eletrônica, ondas de rádio ou qualquer outro processo usual (dizemos que está enviando uma informação clássica, o que significa que a informação não pode ser transportada mais rapidamente que a luz).

    De posse do resultado enviado pela Ana, Bruna faz um conjunto de medidas em seu fóton B que deixou guardado com cuidado, e que vamos lembrar, foi produzido em um estado emaranhado com o fóton A  de Ana. Ao final deste procedimento, Bruna obtém o mesmo fóton X de Ana, finalizando o processo de teletransporte. Dizemos então que o fóton original X de Ana foi teletransportado para  Bruna. É importante deixar bem claro que NÃO ocorreu nenhum transporte de matéria  de Ana para Bruna, mas o transporte de informações quânticas  (informações sobre o estado do fóton X que foi emaranhado com o fóton A no laboratório de Ana), e que o teletransporte não ocorre com velocidade acima da luz, pois para que o teletransporte seja efetivado, as informações  (informações clássicas) dos procedimentos que Ana realizou em seu laboratório, devem ser enviados para Bruna, e isto sempre é realizado com velocidades menor ou igual ao da luz no vácuo. Somente a partir destas informações enviadas por Ana, é possível a Bruna finalizar o teletransporte 

    O teletransporte pode ser imaginado como o envio de um fax? Isto é um envio de instruções  de como obter o fóton X para a Bruna, que obtém então uma cópia de X? Não, pois quando Ana realiza as medidas em seu fóton A,  o fóton X (que está emaranhado com A) após a medida não  será o mesmo (na verdade no nosso exemplo tem 25% de não ser modificado)! Este fato está ligado ao chamado Problema do Colapso da Função de Onda em mecânica quântica, sendo um tema bastante atual de pesquisa. E na física quântica, podemos mostrar que não podemos fazer cópias de um sistema, isto é expresso pelo chamado Teorema de Não Clonagem. O fóton X foi para todo efeito, teletransportado do laboratório de Ana para o laboratório de Bruna, ou em linguagem menos precisa: deixou de existir no laboratório de Ana e apareceu no laboratório de Bruna. 

    Este processo de teletransporte, apesar de ser muito pouco intuitivo  foram observados em experimentos, com fótons e mesmo com átomos. E sua realização experimental, é sem dúvida alguma um grande trunfo indicando a validade da física quântica.

        Um prêmio Nobel sem dúvida alguma, muito merecido.

   
    

outubro 01, 2022

O Paradoxo dos gêmeos

    O chamado Paradoxo do Gêmeos, aparece com o desenvolvimento da Teoria da Relatividade, sendo que talvez a primeira versão que discute a questão de duas pessoas viajando e apresentando diferenças na idades  é um artigo de Paul Langevin de 1911, [1] apesar de que em 1905 Einstein já discutia a ideia do tempo passar diferente para diferentes observadores (Einstein considerou o assunto "peculiar" mas não um paradoxo ) .

Figura 1. Uma representação de gêmeas, na cultura Yoruba. Fonte:The Children's Museum of Indianapolis, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15094650

    Mas o que é exatamente o "Paradoxo dos Gêmeos"? Antes de continuar, vamos deixar claro que não existe nenhum Paradoxo, se existisse seria realmente um problema para a teoria da relatividade, mas vamos utilizar o termo usual de "Paradoxo dos Gêmeos", assim o paradoxo dos gêmeos é um falso paradoxo, mas apesar disso nos permite discutir alguns conceitos importantes da física relativística. 

    Vamos considerar duas gêmeas, uma que fica na Terra  (que vamos chamar de Alice) e outra (a Bruna) que viaja pelo espaço indo da Terra para um estrela distante e depois retornando. Utilizando a teoria da relatividade, podemos demonstrar  que se a viajem de ida e volta para Bruna   tenha durado dois anos (obviamente isto depende da distância percorrida e da velocidade, mas não vamos nos preocupar com isto), na Terra teriam passado duzentos anos.  O termo paradoxo é utilizado argumentando que como o movimento é relativo, poderíamos considerar que a gêmea na Terra (Alice) se afastou e depois voltou, portanto do ponto de vista de Bruna o processo deveria ser o inverso do descrito acima: o tempo para Alice deveria ser menor que a de Bruna!

    O raciocínio acima assume uma simetria na situação,  o que não ocorre de verdade, de forma que o paradoxo não existe. 

Figura 2. A viagem das gêmeas (diagrama com escala arbitrária).

    Na figura 2 representamos em um diagrama espaço-tempo a situação da viagem de Bruna (em vermelho) e a situação de Alice (linha vertical em preto) que está parada no referencial da Terra. Notemos que o desenho não é simétrico. O eixo horizontal representa a distância e o eixo vertical o tempo, no sistema de referência de Alice. Se considerarmos apenas referencias inerciais, Bruna necessitaria de DOIS referencias inerciais enquanto Alice de apenas UM, o que indica que o problema não é simétrico.

    Para explicar o paradoxo, duas respostas muito populares são

  • A existência de aceleração (no caso de Bruna que precisa acelerar para sair da Terra, acelerar para fazer o retorno e voltar para a Terra e novamente acelerar para reduzir para poder parar na Terra. 
  • A necessidade de utilizar a Relatividade Geral para resolver de forma completa o paradoxo .
As explicações são razoáveis, e de fato quando consideramos estas condições, conseguimos entender as diferenças nos intervalos de tempos que são mensuradas. Mas exitem situações sem a presença da gravitação e sem aceleração onde ocorrem estas diferenças nos intervalos temporais! 

    Então teríamos outras explicações? As explicações utilizando sistemas acelerados e a relatividade geral, não estão erradas! Elas podem ser aplicadas e conseguem descrever corretamente os efeitos do Paradoxo dos Gêmeos. No entanto, por não poderem ser utilizados para explicar situações sem aceleração ou presença da gravitação, devem ser entendidos como explicações para situações particulares [2].
    
   Na física newtoniana eventos que são simultâneos (isto é que ocorrem no mesmo instante do tempo), são simultâneos para todos os observadores, isto porque com a noção de tempo absoluto, podemos criar um padrão para a medida de tempo que é a mesma para todos os observadores. Mas não existe um padrão de distância que vale para todos os observadores na física newtoniana, independente do seu estado de movimento? Sim, existe. Então qual a diferença, porque não dizemos que o espaço é absoluto também? Basicamente porque mesmo em movimento, como o tempo é absoluto (o mesmo para todos os observadores), isto nos permite transferir o padrão de medida no espaço de um observador a outro. É importante perceber que a medida da posição depende do observador (o referencial utilizado). Imagine um carro andando em uma estrada, e que você esteja dentro do carro. Para um observador externo, o carro (e você e tudo que esteja dentro do carro), terá posições diferentes em cada instante do tempo. Mas para o seu referencial (que é o carro), dentro do carro nada se move, tudo está parado um relação ao outro dento do carro, logo as posições em relação ao referencial do carro não mudam com o tempo. A existência de  um tempo absoluto nos permite SINCRONIZAR todos os relógios (instantes de tempo) existentes no espaço, independente do seu estado de movimento. E com isto podemos passar o padrão de distância de um observador a outro, sem nenhum problema [3].

     Na física relativística, a noção de tempo absoluto utilizado na física newtoniana, deixa de ser válida, isto implica que o processo de sincronização deve ser alterado, pois não temos um padrão de tempo que possa ser utilizada por todos os observadores. Nesta situação, é importante que sejam estabelecidos para cada evento, o instante de tempo e a posição da ocorrência do evento. E para fazermos isto, precisamos ter um processo de calibração e definição um padrão que possa ser utilizado por todos os observadores. E este padrão inclui o tempo e o espaço, o que justifica a introdução do conceito de espaço-tempo [4].Utilizamos uma grandeza que denominamos intervalo espaço-temporal, mas não vamos nos alongar neste assunto. O que importa é que podemos construir um padrão (que envolve o tempo e o espaço) que é o mesmo para todos os observadores, independente do seu estado de movimento. A necessidade de construirmos um espaço-tempo, decorre da Teoria da Relatividade (para uma discussão sobre a Teoria da Relatividade , um bom local para procurar sobre o tema é o site do CREF, por exemplo este texto ou este texto entre vários outros indicados nos links do CREF, mas se desejar um livro, existem muitos excelentes textos, um que particularmente gosto muito é Spacetime Physics , de E. Taylor e J.A. Wheeler, um outro livo interessante é  Flat and Curved Space-Times , de G. Ellis ).

    Quando este processo de sincronização é realizado para diferentes observadores, em alguns casos o processo não pode ser realizado de forma unívoca! Por exemplo em uma trajetória de ida e volta, se imaginarmos como um círculo, não conseguimos sincronizar de forma única todos os relógios em cada ponto localizados no círculo (note que neste caso, por estar em movimento circular, em cada posição temos um referencial inercial diferente, e existe portanto um aceleração no sentido newtoniano).  Uma outra situação na qual ocorre o paradoxo dos gêmeos, é em um espaço periódico ou em espaços denominamos compacto. Se você já jogou um vídeo game  no qual um objeto sai de um lado de uma tela (digamos na direita) e aparece na esquerda, este seria um exemplo de espaço compacto: dizemos que o lado esquerdo da tela está identificado com o lado direito da tela. Neste caso se considerarmos uma das gêmeas parada (Alice)  e a outra gêmea (Bruna) com movimento horizontal, as duas irão se encontrar periodicamente. E não existe aceleração, ambas as gêmeas estão com velocidade constante (uma com velocidade zero e outra com velocidade diferente de zero). Em um diagrama espaço-tempo, o movimento de Alice é uma reta vertical e a de Bruna segmentos de reta, que ao atingir  o lado direito da tela, reaparece no lado esquerdo da tela.

Figura 3. Trajetórias de Alice e Bruna no espaço-tempo (diagrama com escala arbitrária).

    Na figura 3 representamos as trajetórias de Alice (em azul e na vertical) e Bruna (em vermelho e inclinado) em um diagrama espaço-tempo em um espaço compacto de largura L. Note que Bruna ao atingir o lado direito da tela, reaparece no lado esquerdo da tela, e mantém a mesma inclinação (a mesma velocidade). Quando analisamos esta situação, obtemos o mesmo efeito do paradoxo dos gêmeos para o caso de uma viagem de ida e volta com aceleração nos trechos, mas agora devido ao tipo de espaço utilizado podemos realizar uma ida e volta sem aceleração e em um espaço sem curvatura (para quem tiver interesse em mais detalhes, recomendo olhar este artigo  1973 ou o artigo do Luminet indicado em [2]. Compare com atenção a diferença entre a figura 1 e a figura 2. Note que na figura 1, para Bruna voltar ela precisa mudar a sua direção de movimento, enquanto no caso 2 isto não é necessário, devido ao tipo de espaço utilizado.

    Assim o chamado paradoxo dos gêmeos não ocorre devido a aceleração ou a necessidade de utilizar a relatividade geral, mas sim devido as características do espaço-tempo e  o processo de sincronização dos relógios. 

Notas

[1]O trecho do artigo de Langevin, que trata do tema, é "For this it is sufficient that our travelr consents to be locked in a projectile that would be launched from Earth with a velocity sufficiently close to that of light but lower, which is physically possible, while arranging an encounter with, for example, a star that happens after one year of the traveler's life, and which sends him back to Earth with the same velocity. Returned to Earth he has aged two years, then he leaves his ark and finds our world two hundred years older, if his velocity remained in the range of only one twenty-thousandth less than the velocity of light. The most established experimental facts of physics allow us to assert that this would actually be so."


[2] Existem textos muito interessantes que tratam do paradoxo do gêmeos. Eu indicaria os seguintes textos : R. Perrin,  Twin paradox: A complete treatment from the point of view of each twin, American Journal of Physics 47, 317 (1979); https://doi.org/10.1119/1.11835 e JP, Luminet, Time, Topology and the Twin Paradox, acesso livre em https://arxiv.org/pdf/0910.5847.pdf

[3] Depende também da possibilidade de passar a informação de forma instantânea de um observador a outro. 

[4]Na física newtoniana, o espaço e o tempo podem ser tratadas como separadas, e enquanto a noção de espaço absoluta é abandonada (na formulação original de Newton, ele utiliza uma noção de espaço-absoluto), a noção do tempo continua sendo absoluto, de forma que podemos falar de espaço e tempo como entidades separadas.  Um livro interessante sobre o assunto é Philoshophy of Physics: Space and Time de Tim Maudin, publicado pela Princeton Univertisy Press ou o livro The Phiosphy of Spaxce and Time, de Hans Reichenbach, mais antigo e publicado pela Dover .





setembro 14, 2022

O charlatanismo magnético

    O magnetismo é conhecido possivelmente faz mais de 2 mil anos, encontramos por exemplo no livro De Anima ( cerca de 350 AC) de Aristóteles (384 AC-322 AC) , citações a  trabalhos de Tales de Mileto (624 AC-548 AC) a respeito do magnetismo. E  como um ramo da ciência podemos estabelecer seu início com Willian Gilbert (1544 - 1603), que entre outras coisas foi o primeiro a considerar a Terra como um grande imã.  Mas apenas no século XIX, com os trabalhos principalmente de André  Marie Ampere (1775-1836),  Michael Faraday (1791-1867), Hans Christian Oersted (1777-1851) e James Clerk Maxwell (1831-1879) foi possível construir uma teoria consistente  mostrando que a eletricidade e o magnetismo são fenômenos relacionados, originando a disciplina do eletromagnetismo.

    Mas o magnetismo também atraiu (sem a intenção de fazer um trocadilho) e continua atraindo um grande número de  pessoas com visões no mínimo equivocadas sobre o tema. E infelizmente,  na área de saúde, a presença destes mercadores de ilusões ainda é bem forte. Visões equivocadas, possivelmente tendo origem nos trabalhos de Paracelso (1493-1541) e Franz Anton Mesmer (1734-1815),  ainda continuam presentes na atualidade, a única diferença é de que adotaram uma linguagem mais moderna. 

    Antes de continuar, é importante deixar claro que existem aplicações do magnetismo que são importantes para a saúde,  por exemplo os equipamentos de ressonância magnética para obtenção de imagens (estima-se que cerca de algumas dezenas de milhões de ressonâncias são realizadas anualmente no mundo todo [1]). E existem alguns outros estudos sobre aplicações do magnetismo no tratamento e/ou diagnóstico de doenças, sendo realizadas de maneira séria e cuidadosa. Não são estes que vamos tratar neste texto. 

    Uma rápida busca na internet sobre magnetismo e saúde, nos remete a coisas como "o magnetismo melhora o pH do sangue", "magnetismo e  a cura do câncer" e até "magnetismo e a Covid-19" [2], além das vendas de pulseiras magnéticas, colchões magnético e muitas outras coisas que prometem verdadeiros milagres. E uma das justificativas é de que o campo magnético ajudaria a alinhar as substâncias presentes no organismo, permitindo um fluxo mais ordenado, resultando em um melhor equilíbrio no organismo. Será?

    Bem, para isto precisamos ter algumas noções de grandezas dos campos magnéticos. O da Terra é da ordem de 0,00005 teslas , de um imã da geladeira 0,001 teslas,   das pulseiras magnéticas cerca de  0,01 a 0,2 teslas e os aparelhos de ressonância magnética, os mais comuns estão na faixa de 1 a 4 teslas.  Tesla é a unidade de medida no Sistema Internacional de Unidades, outra unidade muito utilizada é o gauss, sendo que  1 tesla=10000 gauss (nas pulseiras magnéticas, os anúncios costumam expressar em gauss, possivelmente por impressionar mais ao escrever 2000 gauss do que 0,2 teslas). Comparativamente as pulseiras tem campos bem maiores que o da Terra, e dos imãs de geladeira , mas são  menores do que a dos aparelhos de ressonância magnética.  

    Antes de entrarmos em uma descrição mais detalhada, podemos   realizar um experimento bem simples, para entender que além da força magnética,  e a relação entre ela e outras forças que atuam no corpo , que vai determinar qual é a mais  importante.  Pegue um imã e grude em um local metálico. Nesta situação a força peso é menor que a força que surgem no sistema devido ao campo magnético do ímã. Agora coloque uma folha de papel entre o ímã e o metal, verifique se  continua grudando (possivelmente continuará grudando). Agora acrescente mais uma folha e repita o procedimento. Continue até o momento em que o ímã não consegue mais ficar grudado.   Dependendo do imã, com uma camada de papel com espessura entre alguns milímetros (para os ímãs de geladeira)  até cerca 1 cm (para ímãs de neodímio pequenos), você vai notar que o ímã não vai ficar grudado no metal! Isto significa que a força devido a interação do ímã com a geladeira não é suficiente para compensar a força peso do ímã. Mas é importante lembrar que o papel não blinda o campo magnético, ele foi utilizado apenas para introduzir uma noção qualitativa de como o campo magnético diminui rapidamente com a distância. Como verificar se o campo magnético não foi blindado? Aproxime uma bússola e vai verificar que o campo magnético está presente, mesmo com as folhas de papel entre o imã e a bússola. Este experimento simples serve para mostrar que a força de interação  do campo magnético dos ímãs permanentes com os objetos  diminui rapidamente com a distância. O campo magnético também diminui com a distância, mas para medir o seu comportamento com a distância, precisamos de um equipamento específico, enquanto este simples experimento nos permite verificar esta variação de forma qualitativa de forma bem simples. Será que o campo produzido por uma pulseira vai ter algum efeito  no corpo humano? Muito improvável!

    

Figura 1. Um exemplo de ímã utilizado em pulseiras magnéticas. Em (a) a localização ímã e em (b) uma comparação de tamanho com outro imã. A seta indica o ímã da pulseira,

    Você pode argumentar que no corpo humano o campo magnético vai atuar nas células do organismo , e como suas massas são muito menores, o nosso experimento comparando com o peso não teria sentido! Pensamento justo! Seria possível comparar a força exercida por um campo magnético, digamos na hemoglobina (mais adiante explico a razão desta escolha) com a força peso na mesma hemoglobina? A resposta é sim, podemos fazer uma estimativa muito boa. Esta estimativa e outras podem ser encontradas em [3], onde o autor analisou eventuais impactos do uso de aparelhos de ressonância magnética no corpo humano. Vamos apresentar dois destes resultados.

    Mas antes, é importante entender como um campo magnético de um  ímã interage com os objetos. Dependendo do material, o comportamento vai ser diferente, e isto quem já brincou com um ímã sabe por experiência: em alguns o ímã gruda em outros não. Por que isto ocorre? E o que gera um campo magnético?  Um campo magnético é gerado sempre que alguma carga elétrica está em movimento. Um exemplo desta aplicação são os eletroímãs, que pode ser construído facilmente em casa.

Figura 2.  Exemplo de um eletroímã.   Por Gina Clifford - cobalt_grrl on Flickr, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15104962

    Ao contrário dos imãs permanentes, um eletroímã somente gera um campo magnético quando uma corrente elétrica circular no sistema. Isto permite ligar e desligar o campo magnético de maneira relativamente simples, o que não é possível com os ímãs permanentes.

    De uma maneira simplificada, podemos dizer que nos átomos temos cargas elétricas em movimento, e isto faz com que  comportem como ímãs minúsculos, que vamos denominar de  ímãs elementares [4]. Para a maioria dos materiais, as orientações destes ímãs elementares são desordenadas (ou aleatórias) de forma que na média o material como um todo possui um campo magnético nulo. Mas em alguns materiais estes ímãs elementares podem ter um alinhamento menos desordenado, e o campo magnético gerado não é nulo. É o que ocorre com os ímãs permanentes. 


Figura 3. Exemplo de ímãs elementares desordenados em (a) e ordenados em (b). 


    Mas mesmo que o objeto não tenha um campo magnético permanente, ele pode sofrer influências de um campo magnético externo.  Nestes casos existem diferentes tipos de comportamento,  um que é atraído pelo campo magnético e outro comportamento no qual o objeto  é repelido pelo campo magnético. Estes materiais são denominados materiais paramagnéticos e   materiais diamagnéticos, respectivamente. Estes dois tipos de materiais interagem mais fracamente com um campo magnético. Os materiais  que tem a maior interação com o campo magnético, pertencem à categoria de materiais ferromagnéticos, e os ímãs permanentes são construídos com estes materiais.  Os diferentes constituintes do nosso organismo, possuem comportamentos magnéticos diferentes, e a intensidade como respondem a um campo externo são diferentes. Além dos materiais magnéticos, no nosso organismos temos íons , que por possuem carga elétrica, e estas cargas em movimento são também afetados por um campo magnético externo. Mas será que um campo magnético de um imã seria suficiente para causar movimentos diferenciados entre estes constituintes,  e causar algum dano ou modificações no funcionamento do nosso organismo? Bem, esta é a hipótese das chamadas terapias magnéticas.

    Quando analismos os efeitos de um campo magnético considerando as propriedade magnéticas dos constituintes biológicos (sejam como ímãs elementares, ou íons em movimento), podemos estimar as forças, os torques e as energias envolvidas nestes processos de interação do campo magnético com estes constituintes. Este tipo de estudo é importante para que seja possível entender os limites de segurança na utilização dos aparelhos de ressonância magnética (ver por exemplo a referencia [3] )

    Como inicialmente consideramos uma relação do peso com a força magnética, vamos considerar o efeito em uma célula de hemoglobina, presente nas hemácias (as células do sangue).   O comportamento magnético do plasma em relação à hemoglobina  é diferente, sendo que a hemoglobina sofre mais a força do campo magnético do que o plasma. Isto porque a hemoglobina contém ferro, que é um material ferromagnético. Quando comparamos a força magnética   e a força peso, na presença de um campo magnético de 4 tesla (portanto muito maior do que a das pulseiras terapêuticas) na hemoglobina , a força magnética é cerca de 3% da força peso (estes dados podem ser conferidos na  referência  [3] ). E a força peso NÃO é a mais intensa que atua na hemoglobina. Se fosse a força predominante teríamos mais hemoglobina nos pés do que no resto do corpo, o que não é verificado. As forcas que existem na corrente sanguínea, são muito maiores que a força peso que atua nas hemoglobinas.  ( Atenção, isto não implica que a gravidade não tem importância para a circulação sanguínea, pois estudos em situações de microgravidade indicam que existem efeitos mensuráveis [5], mas aqui na Terra não estamos em microgravidade. ) Como a força magnética de um campo magnético de 4 teslas é menor que a força peso, a sua influência para a dinâmica da hemoglobina é assim desprezível.

    Talvez você tenha preferência sobre o efeito na água, afinal temos muita água em nosso organismo.  Como a água não é ferromagnética não podemos utilizar o resultado acima, a água tem propriedades diamagnéticas. Mas podemos comparar uma outra grandeza, a energia que o campo magnético transfere para a água, e comparar esta energia com a energia média nas moléculas de água devido a agitação térmica. Hoje sabemos que a temperatura de um corpo esta relacionado com a energia cinética média das partículas do sistema, e isto nos permite associar a temperatura com a energia cinética das moléculas da água em nosso organismo. Para  que seja efetivo, a energia transferida pelo campo magnético tem que ser maior (ou pelo menos da mesma ordem de grandeza) que a energia média das moléculas de água presentes no corpo humano. Quando realizamos esta comparação, para o campo  de 4 tesla a energia transferida devido ao campo magnético é cerca de 0,00000001 vezes  (10 dividido por 1 bilhão) a energia térmica das moléculas de água. Novamente um valor desprezível!

    Os valores acima foram obtidos para o caso de um campo de 4 teslas, que é muito maior do que o encontrado nas pulseiras terapêuticas,   logo para as pulseiras os efeitos são muito menores! Portanto, utilizando os conhecimentos da física, é possível mostrar que os efeitos de um campo magnético devido as pulseiras terapêuticas no corpo humano são completamente desprezíveis, de forma que não tem a mínima influência na melhora da saúde das pessoas (se tiver interesse para outras situações além dos tratados aqui, recomendo a referência [3]). Ressaltamos que os conceitos físicos utilizados são bem robustos e testados em diferentes situações, e em algumas em situações muito mais extremas do que as encontradas no corpo humano [6].     

     Uma vantagem é que estas pulseiras não causam nenhum dano para a saúde,  portanto a sua utilização também não causa nenhum maléfico, exceto para seu bolso.  


[1] Para dados por exemplo da OCDE , para o Brasil ver  ANS , ver também a referência [3].

[2] No período da pandemia,  com o início das vacinações, corria um boato de que as vacinas tinham propriedades magnéticas. Este tema pode ser lido em https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=a-vacina-e-magnetica-sera-mesmo  onde tratei com o Fernando Lang as falsas notícias sobre as vacinas magnéticas.

[3] J. F. Schenck, Safety of Strong, Static Magnetic Fields  ,J Magn Reson Imaging, v12, 2-19, 2000.

[4] Não vamos falar aqui de spin, mas quem estiver interessado em estudar de maneira mais aprofundada as questões relacionadas com o magnetismo, recomendo procurar mais detalhes sobre a relação entre o spin e o magnetismo (spin é uma propriedade que não tem um análogo simples na física clássica. Não é neste caso adequado traduzir spin por giro, pois vai gerar mais confusões do que o necessário)

[5]  Para estudos com astronautas em ambiente de microgravidade , veja por exemplo este artigo de 2019.

[6] Existem estudos in vitro, isto é em condições laboratoriais muito específicos, onde é possível detectar os efeitos do campo magnético por exemplo nas hemoglobinas. Mas nenhum  estudo robusto e metodologicamente correto realizados in vivo comprovam estes efeitos.

    

    

setembro 03, 2022

Censura cósmica

     

    Censura cósmica? Seria alguém ou alguma misteriosa instituição proibindo a divulgação de segredos do Universo?  Uma teoria de conspiração cósmica? Não, não. A Censura Cósmica é uma conjectura da física, que diz que o Universo não permite a formação de singularidades nuas. Mas, o que seriam as singularidades nuas.

     Bem, vamos seguir o conselho do Rei ao Coelho Branco  e começar pelo começo.

    O termo censura cósmica foi apresentado por Roger Penrose (prêmio Nobel de Física em 2020) em 1969, aplicado ao estudo de soluções da Relatividade Geral, em particular de buracos negros.  Neste artigo, após uma discussão sobre o colapso gravitacional, Penrose traz a pergunta [1]

  Será que existe um censor cósmico que proíbe o surgimento de singularidades nuas, vestindo cada uma (das singularidades) com um horizonte de evento absoluto? 

    Singularidade na Relatividade Geral ocorre em duas situações:  (1) a curvatura do espaço-tempo diverge (ou seja se torna muito grande e sem limite) (2) ou quando um caminho (dizemos uma geodésica) no espaço-tempo não pode estendida além de um certo tempo (próprio) ou dito de forma não tão  precisa: uma trajetória "acaba" em um ponto no espaço-tempo.  Imagine a trajetória de uma pessoa no espaço, e após um tempo finito a pessoa simplesmente desaparece no espaço-tempo. O trabalho de Roger Penrose, discute este segundo tipo de singularidade. Em alguns casos as duas singularidades são descrições de uma mesma situação, mas não é algo necessário.

    Em um buraco negro, temos a formação de uma singularidade.  Um buraco negro é formado quando uma certa quantidade de massa ocupa uma região muito pequena, ou melhor colapsa em um único ponto.  Algumas estrelas com massas maiores que  a do Sol, ao final da sua vida se transformam em buracos negros, e este processo de formação é relativamente bem conhecido e compatível com os dados observacionais. No centro de muitas galáxias, existem buracos negros super massivos, com massas da ordem de bilhões de  massas solares, mas o mecanismo exato de como formam ainda não é bem estabelecido.  Além dos dois tipos acima, teoricamente podem existir buracos negros com massas menores (os buracos negros primordiais)  e que talvez tenham sido produzidos no início do Universo, mas estes ainda não foram detectados, ao contrário dos dois primeiros tipos, que tem sido detectados com certa frequência no Universo.  Independente do tipo de buraco negro,  se for possível comprimir uma certa quantidade de massa continuamente, ao atingir um certo tamanho, está massa acaba gerando  um buraco negro.

    E como poderíamos comprimir? No caso de objetos com massa muito grande, quem faz este processo é a gravidade. Mas nem toda massa que é comprimida  pela gravidade vira  um buraco negro. Isto ocorre porque além da gravitação, existem outras forças na natureza. E dependendo da massa, diferentes processos podem ser responsáveis para evitar o colapso completo do objeto (exemplos são os planetas e as estrelas como as anãs brancas ou as estrelas de nêutrons),  mas existe um limite a partir da qual, a gravidade é tão intensa, que  o colapso final é inevitável.  Isto significa que toda massa vai ficar concentrado em uma região muito pequena!! Utilizando a gravitação clássica, a região seria um ponto: toda massa seria comprimida em um único ponto no espaço.

    Este colapso completo, forma o que é denominado singularidade. A existência de singularidade nas soluções da Relatividade Geral eram bem conhecidas, mas devido a dificuldades em obter soluções gerais, as situações que apresentavam singularidade exigem um alto grau de simetria. E a grande dúvida, era se as singularidade sobreviveriam em condições de perda de simetria, pois na natureza os objetos não possuem a simetria exata impostas para as obtenção das soluções exatas. Roger Penrose demonstrou que sob condições extremamente gerais, a formação de uma singularidade é inevitável, ou seja, não dependem da simetria imposta para a obtenção das soluções da Relatividade Geral.  É importante ressaltar que os trabalhos não mostram que a formação de um buraco negro é inevitável,  pois um buraco negro é muito mais que uma singularidade no espaço-tempo. É necessário ter um horizonte de eventos. O Horizonte de Eventos é uma  superfície que delimita duas regiões no espaço-tempo. E qualquer objeto que esteja dentro  da região delimitada pelo Horizonte de Eventos, não pode mais retornar para fora da região.

Figura 1. Representação esquemática do colapso gravitacional (Fonte: [2] )

    Estas singularidades sem a presença de um horizonte de eventos, seria no mínimo embaraçoso para a física. Por que? Significaria uma região com densidade infinita (possivelmente, nestas escalas muito pequenas, efeitos quânticos devem impedir este colapso em um um ponto, mas ainda não sabemos ) e isto ainda não sabemos como tratar com a nossa atual etapa de conhecimento. Mas talvez um problema mais sério é de que perdemos a capacidade de determinar com precisão a evolução de um sistema, pois não conseguimos determinar as condições de contorno na singularidade. De uma maneira simples, uma condição de contorno nos informa qual ou quais os valores que uma grandeza deve possuir em uma certa região. Um exemplos cotidiano é uma panela com água que colocamos para aquecer no fogão: uma das condições de contorno é a quantidade de energia ("a temperatura da boca do fogão") que é fornecida na parte inferior da panela. Se você costuma tocar violão, quando você afina cada corda, (aumentando ou diminuindo a tensão nas tarraxas) esta  modificando as condições de contorno. Se existisse uma "singularidade" nas tarraxas, não teria como afinar seu violão!

    No caso de um buraco negro, a existência da singularidade deixa de ser um problema sério, pelo menos para quem está fora do horizonte de eventos.  É como se ao varrer uma sala, todo lixo fosse colocado para baixo do tapete. Ou seja, se não levantarmos o tapete, a sujeita não será visível. Mas a sujeira continua a existir. E justamente por esta possibilidade, que Roger Penrose levantou a questão se existiria ou não algo como uma "censura cósmica" que levaria a formação de um horizonte de eventos SEMPRE que surgisse uma singularidade no Universo. Uma singularidade estaria sempre  associada à um horizonte de eventos, isto é, sempre estaria "vestida" e assim não seria possível observar uma singularidade "nua".

    No entanto, são conhecidas soluções que não possuem Horizonte de Eventos, por exemplo no caso dos chamados buracos negros extremos. Neste caso temos um buraco negro carregado com sua máxima carga possível, e podemos mostrar que não ocorre a formação do horizonte de eventos. Existem outras soluções que violam a censura cósmica, mas são ainda soluções muito particulares e que dificilmente existiriam na natureza.

    Atualmente não temos nenhuma informação observacional da existência de uma singularidade nua no Universo. Isto naturalmente não implica que não existam   as singularidades nuas, talvez seja apenas uma dificuldade de entender O QUE seria observado SE existir uma singularidade nua, ou que nossos equipamentos ainda não sejam suficientemente sensíveis para a detecção de eventuais singularidades nuas. Mas uma outra possibilidade, é a de que com  a inclusão de efeitos quânticos evitem a formação de singularidades no espaço-tempo não seja permitida e que a existência de singularidade nas soluções da Relatividade Geral seja  um dos indícios da necessidade de uma teoria de gravitação quântica. 

    

   Referências e notas

[1] O trecho completo sendo 

"We are thus presented with what is perhaps the most fundamental unanswered question of general-relativistic collapse theory, namely: does there exist a “cosmic censor” who forbids the appearance of naked singularities, clothing each one in an absolute event horizon? In one sense, a “cosmic censor” can be shown not to exist. For it follows from a theorem of Hawking [19] that the “big bang” singularity is, in principle, observable. But it is not known whether singularities observable from outside will ever arise in a generic collapse which starts off from a perfectly reasonable nonsingular initial state. Ver em  R. Penrose, Gravitational Collapse: the Role of General Relativity, Rivista del Nuovo Cimento, Numero Speziale I, 252 (1969), republicado em Penrose, R. “Golden Oldie”: Gravitational Collapse: The Role of General Relativity. General Relativity and Gravitation 34, 1141–1165 (2002),  https://doi.org/10.1023/A:1016578408204


[2] S. Hawking e G. Ellis, Large Sacle Structure os Space-time, Cambridge University Press, 1973

fevereiro 14, 2022

O paradoxo de Zenão e a Mecânica Quântica

    Aquiles resolveu desafiar para  uma corrida, sua  amiga tartaruga, e como imaginava que era muito mais rápido que a tartaruga, resolveu dar uma vantagem para ela. Era uma corrida de apenas 100 metros, e Aquiles disse para a tartaruga "eu espero você chegar na marca de 50 metros, antes de começar a correr". Para ajudar a verificar a lisura na aposta, Aquiles convidou seu amigo Zenão para ajudar na organização. Nas casas de apostas, Aquiles era o favorito! Ninguém queria apostar na tartaruga.  Mas ao saber das condições da corrida, Zenão resolveu apostar sua fortuna na tartaruga. Quando soube disso, Aquiles ficou furioso com seu amigo! "Ah Zenão, como você faz isso comigo? Acha que vou perder a corrida para a tartaruga?". Zenão olhou para Aquiles, e suspirando respondeu "Sim, amigo. Você vai perder." E antes que Aquiles ficasse mais furioso, explicou o seu raciocínio. 

"Para você alcançar a tartaruga, que inicia 50 metros na frentes, antes você precisa percorrer a metade da distância, que é 25 metros. Mas para atingir a distância de 25 metros, você precisa antes percorrer a metade desta distância, que é 12 metros e meio". Aquiles que já estava furioso, ficou mais ainda. " E dai? Qual o problema". Zenão olhou tristemente seu amigo, e continuou a explicar "Pois então, meu amigo, você sempre terá que vencer a metade da distância. E como para cada trecho, sempre podemos achar a metade, este processo continua indefinidamente, e vamos ter infinitos pedaços. Nunca vai conseguir atingir a tartaruga, meu amigo."         Aquiles ficou mais furioso e gritou "Eu sou mais rápido que uma flecha! Não vou perder para uma tartaruga!". Zenão, continuou a olhar tristemente para o seu amigo. "Aquiles, a flecha quando está em voo, ocupa sempre o mesmo espaço, o mesmo espaço que ocupa quando está em repouso. Logo a flecha não se movimenta". Zenão apenas complementou "O movimento é uma ilusão." Aquiles que antes estava nervoso, ficou sem saber o que dizer, mas Aristoteles que estava assistindo tudo, murmurou rapidamente "é tudo uma falácia".

  Apresentamos acima,  de uma forma bem livre, os chamados Paradoxos de Zenão,  um filósofo grego , que viveu no período de (490-430 AC), e que foi discípulo de um outro filósofo grego, Parmênides. A ele são atribuídos diversos paradoxos relativo ao movimento, que são descritos nos escritos de Aristóteles [1].  E o que os Paradoxos de Zenão tem a ver com a mecânica quântica?

    Um artigo que trouxe o tema para a física foi publicado em  1977, e nele  Misra e Sudarshan [2] argumentam que 

    " Uma partícula instável que é observada continuamente para verificar se ela decaiu ou não decaiu, nunca será detectada como decaida. Como isso lembra o famoso paradoxo de Zenão sobre a impossibilidade do movimento de uma flecha em voo, denominamos este resultado de paradoxo de Zenão na teoria quântica."

    Antes de continuar, um spoiler : não existe paradoxo de Zenão quântico. O termo que é utilizado atualmente é Efeito Zenão Quântico, pois não existe nenhum paradoxo no problema. O resultado é  uma consequência da  mecânica quântica [3], não sendo necessário nenhuma modificação na sua estutura.

    Mas o que é o Efeito Zenão Quântico? Em palavras simples é o efeito de inibir mudanças em um sistema, quando são efetuadas medidas no sistema em estudo. Em um sistema quântico podemos calcular a probabilidade de ocorrer algum evento, por exemplo, o decaimento de um sistema. O procedimento é relativamente simples,   e basicamente necessitamos determinar as interações existentes no sistema (o que normalmente torna o desenvolvimento  bem mais complexo). Conhecendo as interações, determinamos como o sistema evolui com o tempo, e com isto podemos calcular qual a probabilidade de ocorrer algum evento em particular. O que o Efeito Zenão Quântico descreve é a supressão o decaimento devido a interação deste sistema com um outro sistema, quando consideramos intervalos de tempo relativamente pequenos. No limite, esta interação (observações) impediria um sistema de mudar, o que levou os autores do artigo [2] a citar o paradoxo de Zenão. 


Figura 1. Ilustração do Efeito Zenão Quântico (figura adaptada de [3]).


    A figura 1, ilustra o Efeito Zenão Quântico,    no eixo vertical apresentamos a probabilidade de não ocorrer um decaimento e no eixo vertical representamos  o tempo. O gráfico em traço representa  o que ocorre sem a realização de medidas[4] e em vermelho quando são efetuadas medidas periódicas, a cada período $\tau$, uma medida é realizada  no gráfico são cinco medidas,indicamos com uma flecha os instantes das medidas $\tau, 2\tau, 3\tau, 4\tau, 5\tau $.  Notemos que a probabilidade de não ocorrer o decaimento, diminui mais lentamente quando se realizam as medidas (o gráfico em vermelho)  em relação ao caso sem medidas (gráfico em traço). (O gráfico é adaptado do artigo [3] )

        Desde 1980, diversos experimentos tem comprovado o Efeito Zenão Quântico, utilizando técnicas bem distintas, como polarização de fótons, condensados de Bose Einstein, ions e outras técnicas.  Um assunto que iniciou mais como uma questão conceitual, mas hoje pode nos  ajudar por exemplo  a controlar o que denominamos decoerência quântica em computação quântica. E o que seria a decoerência quântica e computação quântica? Um assunto que vamos tratar nos nossos próximo textos. 

Referências

[1] Para quem desejar conhecer um pouco mais sobre Zenão, é o site https://opessoa.fflch.usp.br/FiFi-19 de uma disciplina ministrada pelo Professor Osvaldo Pessoa Jr, vale a pena dar uma lida. Outro site é https://plato.stanford.edu/entries/paradox-zeno/ ,   Huggett, Nick, "Zeno’s Paradoxes",The Stanford Encyclopedia of Philosophy(Winter 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.).  

Em  http://classics.mit.edu/Aristotle/physics.6.vi.html , é possível acessar uma versão em inglês do livro Física de Aristóteles. No site um trecho que cita Zenão é "Zeno's reasoning, however, is fallacious, when he says that if everything when it occupies an equal space is at rest, and if that which is in locomotion is always occupying such a space at any moment, the flying arrow is therefore motionless. This is false, for time is not composed of indivisible moments any more than any other magnitude is composed of indivisibles."

[2] Do original "An unstable particle observed continuously whether it has decayed or not will never befound to decay! Since this evokes the famous paradox of  Zeno denying the possibility of motion to a flying arrow,  we call this result the Zeno's paradox in quantum theory." B. Misra e E.C.G. Sudarshan, J.Math.Phys 18, 756 (1977). 

[3]P. Facchi e S. Pascazio, J. Phys. A: Math. Theor. 41 (2008) 493001, Topical Review. acesso livre em https://arxiv.org/abs/0903.3297

[4] O termo medida não significa necessariamente a presença de um observador,  mas a interação com um sistema externo (que pode ser um aparelho de medida ou outro sistema quântico).  


fevereiro 07, 2022

A desigualdade de Bell

     Em 1935, Einstein, Podolsky e Rosen publicaram o artigo  (conhecido como artigo  EPR) [1] no qual argumentam que a mecânica quântica não seria uma teoria completa. Apesar de Niels Bohr ter publicado no mesmo ano uma resposta ao artigo EPR, a física teve que esperar cerca de 30 anos para que fosse  possível apresentar uma resposta consistente e que pudesse ser verificada experimentalmente. E isto foi possível, graças ao trabalho de John Bell que publicou um artigo em 1964 [2], no qual apresentou o que hoje denominamos teorema de Bell.  A desigualdade de Bell é uma consequência deste teorema. E o que seria esta desigualdade de Bell? 

    Antes de introduzir a desigualdade de Bell (ou uma das desigualdades), vamos apresentar brevemente o argumento apresentado no artigo EPR, usando uma formulação devido a Ya. Aharanov e D. Bohm, que utiliza um sistema de spin de duas partículas. O spin é uma propriedade quântica que não tem sua contrapartida na física clássica, e quando uma partícula com spin 1/2 é medido possui apenas duas possibilidades de resultado, usualmente representado como +1 e -1. E como sabemos? O spin do elétron quando na presença de um campo magnético, é desviado da sua trajetória e este desvio depende do valor do spin. O resultado deste experimento é de que apenas dois resultados são possíveis, e isto independente de como o campo magnético do aparelho esteja orientado.  Esquematicamente apresentamos este experimento (conhecido como o experimento de Stern Gerlach, de um artigo publicado em 1922) na figura 1.

Figura 1. Representação esquemática do experimento de Stern Gerlach. By Tatoute - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34095239



  Utilizando este sistema de dois estados, podemos construir um estado emaranhado de duas partículas, que representamos como

$\frac{1}{\sqrt{2}} \left(\Psi_{(+)} \Phi_{(-)}- \Psi_{(-)}\Phi_{(+)} \right) $

e não se assuste com a equação.  Apenas passamos para uma forma de equação a representação que utilizamos anteriormente, que apresentamos novamente na figura 2 [3].

Figura 2. Representação esquemática do estado emaranhado. 

   O primeiro termo na equação   deve ser  lido como "a partícula 1 tem spin +1 e a partícula 2 tem spin -1", e o segundo termo  deve ser lido como "a partícula 1 tem spin -1 e a partícula 2 tem spin +1", e a equação toda corresponde a um estado de superposição. Nesta situação se efetuarmos a medida na partícula 1 e  obtivermos como resultado +1, a medida na segunda partícula deve resultar em -1.  Na mecânica quântica, é a medida que faz com que o spin seja +1 ou -1, antes da medida está em um estado de superposição. E isto independente da distâncias entre as duas partículas. O que o artigo de EPR argumenta é de que não é o processo de medida que faz com que o spin seja +1 ou -1, mas de que existe algum mecanismo ainda desconhecido, que não está sendo considerado na descrição do sistema, e como consequência   a medida se apresenta como probabilística. Se fosse possível ter todas as informações ,  poderíamos  dizer com certeza qual o resultado da medida. A analogia é na brincadeira da moeda cara-e-coroa, se fosse possível ter todas as informações, teríamos condições (a princípio) de dizer com certeza se o resultado de jogar a moeda seria cara ou coroa. Portanto, para os autores do artigo EPR, a mecânica quântica seria uma teoria incompleta (mas não uma teoria errada).

O que John Bell apresentou foi uma possibilidade de verificar experimentalmente se existiria ou não alguma variável que não estaria sendo considerada pela mecânica quântica. E neste caso, o fato da partícula 1 ter spin +1 e a partícula 2 ter spin -1 (ou vice-versa) não seria um resultado da medida, mas sim uma propriedade do sistema que não estaria sendo contemplado pela mecânica quântica. E neste caso, não haveria o problema de transmissão de informação  instantânea, pois as propriedades de ter apin +1 ou -1 já estaria presente na partícula e não seria resultado do processo de medida. 

De forma esquemática,  o procedimento seria o seguinte. Um sistema emaranhado de duas partículas é produzido, e cada par é enviado para duas pessoas, que mantendo a tradição da física, serão a Alice e o Bob.  Este par é produzido de tal forma que se uma das partículas tem spin +1 e outra terá spin -1 (considerando uma mesma direção de orientação para medir o spin de ambas as partículas). Alice tem a liberdade de escolher as direções   para realizar a medida do spin da sua partícula,  e igualmente Bob tem a liberdade de fazer suas escolhas de direções para a medida do spin na sua partícula.  As escolhas das direções sendo realizadas aleatoriamente e de tal forma que não seja possível ocorrer uma transmissão de sinal entre Alice e Bob que possam influenciar os resultados, isto é, Alice faz suas medidas de forma independente de Bob e vice-versa. Ambos recebem uma grande quantidade de pares e vão fazendo suas medidas e coletando os resultados.  Por ser um sistema de dois estados, os possíveis resultados das medidas podem ser representados como +1, e -1, independente da direção escolhida para fazer a medidas.  Alice faz uma tabela com os resultados obtidos em cada uma das direções escolhidas e Bob faz a mesma coisa.   A partir destes dados, é possível montar diferentes relações (as chamadas desigualdades de Bell) e comparar o resultado obtido com a previsão da mecânica quântica.  

Para a construção da desigualdade de Bell, assumimos que a medida de Alice  não influencia e medida de Bob (dizemos que é um critério de localidade) e que cada partícula tem um spin definido, não sendo resultado do processo de medida (dizemos que é uma visão realista do mundo). Estas duas hipóteses, formam  a visão de uma natureza localmente realista [4]

Para obter a desigualdade de Bell, vamos considerar que no nosso experimento, Alice e Bob podem realizar medidas em três direções, que representamos pelas letras a,b,c.  E a condição que temos que considerar é que se para uma partícula a=+1 para  outra terá que ser a=-1  e vice-versa, e igualmente para as outras duas direções. Assim,  vamos inicialmente considerar  que a partícula 1 tenha (a,b,c)=(+1,+1,+1), então necessariamente a partícula 2 deve ter (a,b,c)=(-1,-1,-1).  Se consideramos todas as possíveis combinações de sinais, devemos ter um total de  8 pares, sempre considerando que a mesma componente do spin, nas duas partículas devem ser opostas. A tabela 1, ilustra estas  oito combinações possíveis [5]

Tabela 1. Valores das componentes do spin para as duas partículas. Em destaque o caso com a=+1 e c=-1, respectivamente para as partículas 1 e 2.



Na primeira coluna indicamos a frequência que estas combinações aparecem no experimento. Os valores das frequências obtidas em cada situação, não é importante, mas precisamos lembrar que são todos números positivos. 

    Vamos imaginar que Alice faz uma medida na direção a, obtendo a=+1 e Bob faz a sua medida na direção c, obtendo c=-1. Neste caso, ou a situação é a descrita por $n1$ ou $n3$, isto é a frequência que Alice obtém a=+1 e Bob obtém c=-1, é dado pela soma $n1+n3$ (ver o destaque em vermelho na tabela 1). Outra possibilidade é Alice medir na direção b e obter b=-1 e Bob medir na direção c e obter c=-1. Olhando na tabela, esta situação corresponde a $n3$ e $n7$, portanto a frequência de resultados com (Alice) b=-1 e  (Bob) c=-1 será $n3+n7$.  E podemos continuar com diversas outras combinações de resultados.   Vamos começar com uma igualdade

$n1+n3= n1+ n3$

e como as frequências são positivas, podemos construir a desigualdade

$n1+n3\le n1+n2+n3+ n7$

Notemos que $n1+n3$ é a frequência que ocorre  resultado de partícula 1 com a=+1 e partícula 2 com c=-1 e vamos representar como $p(a+,c-)$ , e $n3+n7$ a frequência que ocorre o resultado da partícula 1 ter b=-1 e a partícula 2 ter c=-1 e que vamos representar como $p(b-,c-)$ , como já vimos antes. O termo $n1+n2$, olhando a tabela, corresponde a ter para a partícula 1 a=+1 e para a partícula 2 b=-1, que vamos representar como $p(a+, b-)$, logo podemos escrever

$p(a+, c-)\le p(b-,c-)+p(a+,b-)$

obtendo uma desigualdade, que pode ser comparada com a previsão da mecânica quântica e/ou testada experimentalmente.  Como podemos trabalhar com diferentes escolhas de pares de medidas, podemos obter outras desigualdades, portanto temos todo um conjunto de desigualdades de Bell. É importante ressaltar que para obter este resultado, não utilizamos a mecânica quântica (exceto o spin), e  assumimos que a correlação entre as componentes do spin é uma propriedade da partícula e não o resultado da medida. Outra condição é de que a correlação é produzida localmente. Isto é a desigualdade de Bell expressa a existência de uma propriedade real das partículas, independente da medida e que as interações são locais. (Dizemos que a desigualdade de Bell expressa uma visão de mundo que é localmente realista).

    Experimentos para testar a desigualdade de Bell, tem sido realizados desde os anos de  1970 [7], principalmente após a publicação de uma versão da desigualdade de Bell (conhecida como desigualdade de CHSH [8], que se mostrou mais adequado para implementação experimental)  e em todos os experimentos a desigualdade de Bell é violada! Isto implica que das duas hipóteses (realismo e localidade)  utilizadas para a obtenção da desigualdade de Bell,   uma delas está errada ou ambas estão erradas. Não exclui necessariamente a existência de variáveis ocultas, mas torna a sua existência bem mais restrita.

Figura 3. John Bell  olhando a desigualdade de CHSH, que preve o valor de 2 e o valor obtido pela mecânica quântica $2\sqrt{2}$ que viola a desigualdade. (http://cds.cern.ch/record/969981 )

     Podemos dizer que o teorema de Bell está completamente demonstrado? A rigor não, pois existem possíveis brechas nos experimentos, apesar de serem brechas cada vez mais restritas [7]. Talvez fechar todas as brechas, não seja uma tarefa possível. No entanto, é interessante que um assunto que aparentemente não teria nenhuma aplicação imediata (o teorema de Bell e suas desigualdades), pode ser fundamental para a construção de um sistema de criptografia quântica [8]. Talvez a chamada segunda revolução quântica torne o que era uma área negligenciada pela física (a área de fundamentos da mecânica quântica) em uma área de intensa pesquisa, quem sabe antes do esperado ano da física quântica em 2025.

[1] Einstein, A., Podolsky, B. & Rosen, N. Can quantum-mechanical description of physicical reality be considered complete? Phys. Rev. 47, 777 (1935).

[2] J. S. Bell, “On the Einstein-Podolsky-Rosen Paradox,” Physics 1, 195 (1964) ou em J. S. Bell, “Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics,” (Cambridge University Press, Cambridge, 2004)

[3] O fator de $1/\sqrt{2}$ e o fato de utilizarmos uma subtração e não uma soma (como na representação da figura 2), não é importante no momento.

[4] B. d' Espagnat, The Quantum Theory and Reality, Scientific American, novembro de 1979.

[5] Ver por exemplo  no livro do J.J. Sakurai Mecânica Quântica Moderna. A obtenção da desigualdade de Bell, como realizado em [2] pode ser lido de forma bem didática no livro de D. Griffiths, Mecânica Quântica. 

[7] Alain ASpect, Closing the door on Einstein and Bohr’s quantum debate. Physics 8, 123 (2015)

[8] Uma demonstração simples de como obter a desigualdade de CHSH, pode ser vista em M.A. Nielsen e I.L. Chuang Quantum Computation and Qunatum Information, Cambridge  University Press.

[9] Iulia Georgescu, How the Bell tests changed quantum physics, Nature Reviews, 2021.