janeiro 31, 2022

O colapso da função de onda

 
    Os sucessos   da mecânica quântica, são um forte indício de que as leis fundamentais na física, sejam quânticas. Das quatro interações fundamentais que conhecemos [1], três delas possuem uma formulação quântica com excelentes comprovações experimentais, e a quarta interação que é a gravitação, ainda aguarda por testes experimentais, mas os indícios que necessitamos de uma teoria de gravitação quântica, são bem convincentes. No entanto, existem questões importantes na mecânica quântica que ainda não sabemos como responder. 
    
    Na mecânica quântica, a resolução da equação de Schroedinger tem  o objetivo  de obter   a função de onda  e a partir dela descrever as propriedades  do sistema em estudo.  Na visão usual (a chamada interpretação de Copenhagen) a função de onda descreve de maneira completa o sistema em estudo,  e a equação de Schroedinger nos permite determinar como a equação de onda evolui com o tempo.   Isto é semelhante ao que é realizado na física clássica, como por exemplo na mecânica clássica. Com a solução da equação de Newton, podemos obter uma equação que descreve a trajetória da partícula, e a partir dela, obter  todas as informações da dinâmica da partícula. Mas estas  semelhanças são superficiais, pois existem diferenças fundamentais [2] entre a mecânica quântica e a mecânica clássica (a física clássica) , e algumas destas diferença   vamos apresentar a seguir, concentrando no chamado colapso da função de onda.

    
    Uma questão importante é  como a partir da função de onda, podemos obter alguma informação sobre o sistema? Na mecânica quântica, para cada grandeza física atribuímos um operador. De forma bem simplificada, um operador  é um conjunto de regras a ser aplicado em um outro objeto, e no caso específico  da mecânica quântica, o operador é aplicado em uma função de onda.  Usando a construção que introduzimos no texto sobre estados emaranhados, podemos representar a ação do operador (que representamos com a letra Z na figura 1) como

Figura 1. Representação de um operador atuando em uma função de onda.


e que devemos entender como "o operador Z atua na função de onda" [3]. E qual o resultado desta ação do operador na função de onda? Obtemos como resultado, o valor da grandeza física representada pelo operador.  No exemplo da figura 1a o resultado da atuação do operador é " a moeda é cara" e  na figura 1b  o resultado é "a moeda é coroa" [4].  Se repetirmos a medida imediatamente após a primeira medida, no caso 1a o resultado vai continuar a ser "moeda  é cara" e no caso 2a , "moeda é coroa". ( É importante reafirmar que no  nosso exemplo "moeda é cara" ou "moeda é coroa", representa um sistema que possui apenas duas possibilidades de resultado, e representa um sistema quântico. É  uma analogia com a  grandeza denominado spin que utilizamos na mecânica quântica. O conceito de spin, algumas vezes é introduzido na disciplina de química no ensino médio, quando estudamos os átomos.)

    Agora vamos considerar o caso de superposição , como a da figura 2.  Lembrando que na mecânica quântica, a função de  onda deve considerar todas as possibilidades que o sistema  pode apresentar. No nosso caso, como temos as duas possibilidades "moeda é cara" e "moeda é coroa", além das duas funções de onda apresentadas na figura 1, devemos ter  uma outra que contemple a possibilidade de ter AMBAS as possibilidades.   Quando  efetuamos a medida (representada pelo operador Z) neste estado de superposição,  temos duas possibilidades de resultados: moeda é cara ou moeda é coroa, cada um com 50% de chances de ocorrer. Esta  é em essência a interpretação probabilística da mecânica quântica.   Mas se repetirmos a  medida ("atuar com o operador Z")  imediatamente depois de uma medida, algo diferente vai ocorrer. Se o resultado  da primeira medida for "moeda é cara" , a medida imediatamente depois resultará com 100% de certeza em "moeda é cara", e se o resultado da primeira medida for "moeda é coroa", a medida imediatamente depois resultará com 100% de certeza em "moeda é coroa".  Aquela incerteza inicial (poderia ser cara ou coroa) agora deixou de existir!  O diagrama da figura 2, ilustra esta situação

Figura 2 Medida inicial no estado de superposição e medida imediatamente depois


    Após a primeira medida no estado com superposição,  obtido um resultado (moeda é cara ou moeda é coroa) as medidas imediatamente depois, mantém o mesmo resultado. Isto é, na segunda medida já não temos a mesma função de onda inicial (a com superposição). Para que isto ocorra, a função de onda inicial foi modificada, já não sendo a função de onda com a superposição inicial de "moeda é cara" e "moeda é coroa" [4].  Dizemos que ocorreu um colapso na função de onda.

    Este colapso da função de onda, é na construção padrão da mecânica quântica, um postulado. Não é algo que decorre por exemplo da utilização da equação de Schroedinger. É um postulado que mostra compatibilidade com os dados experimentais de forma excepcional, mas se pensarmos em termos de fundamentos da mecânica quântica, é uma lacuna ainda a ser preenchida: não sabemos como ou porque ocorre o colapso da função de onda.  
 
    Uma situação que talvez ilustre  a noção do colapso da função de onda de  forma mais interessante, é quando desejamos por exemplo determinar aonde está  a partícula, usando um exemplo  apresentado por Einstein (ver figura 3) no Congresso de Solvay de 1927 [5]. Considere uma partícula descrito pela equação de Schroedinger, e que incide em um anteparo com um pequeno furo. Nesta situação, após o furo (suficientemente pequeno) a função de onda ira se espalhar como uma onda esfericamente simétrica, centrada no furo. Em um local depois do anteparo com o furo, temos uma tela que  serve como detector (no local que a partícula atingir, a tela apresenta um brilho), representado na figura 3 pela lina vermelha. O que será detectado é a presença de um único ponto na tela. Uma vez que um ponto na tela detecte a presença da partícula, nenhum outro ponto na tela pode brilhar (e não ocorre, lembre que estamos tratando de um situação de uma partícula por vez). De acordo com a descrição ortodoxa da mecânica quãntica, o que  ocorre é que uma vez que a partícula é detecada, a função de onda sofre um colapso, isto é, a  função de onda que ANTES da detecção estava em todo espaço, ao ser detectada (medida) se torna localizada em torno do ponto de detecção (representado por um ponto amarelo na figura 3). 



Figura 3 A caixa de Einstein



Na figura 4 apresentamos esquematicamente no eixo horizontal uma posição no detector, e no eixo vertical o valor  do módulo quadrado da função de onda , representado como $| \Psi|^2$. Após sair do furo  como a probabilidade de ser detectado na tela é a mesma para qualquer ponto , temos uma reta horizontal para o módulo quadrado da função de onda (gráfico (a) na figura 4). Após a detecção, que ocorre em um único ponto na tela,  a função de onda (ou melhor, com o módulo quadrado da função de onda) deve ficar concentrada em torno deste ponto (gráfico (b) na figura 4).

Figura 4. Representação do módulo quadrado da função de  onda antes (a) e depois (b) da deteção.

    Einstein ao apresentar esta construção, argumentava que se a função de onda fosse uma descrição completa, era difícil aceitar este processo de colapso, por outro lado se representasse uma coleção de partículas , não haveria este problema, e que neste caso implicaria que a mecânica quântica não seria uma teoria completa (mais tarde em 1935, Einstein , Rosen e Podolsky, publicariam um artigo sobre o tema, e em 1964 J. Bell apresentaria uma proposta de como testar experimentalmente esta hipótese , veja o texto anterior do blog [6]). Atualmente existem resultados experimentais, que demonstram fortemente que a proposta da mecânica quântica não ser uma teoria completa, não se sustenta.  

    Existem diferentes propostas para tentar explicar o que causa o colapso da função de onda,  de forma que não seja um postulado, mas uma consequência do modelo teórico.  Mas devido as dificuldades experimentais, ainda não temos condições de dizer quais destas propostas estão corretas.  Talvez nos próximos anos,  pelo menos algumas propostas possam ser descartadas com dados experimentais mais precisos. Entender o colapso da função de onda, talvez explique também  as razões de não observamos em nosso cotidiano a superposição de estados e os estados emaranhados, típicos de sistemas quânticos. 

 

[1] Alguns dados experimentais, indicam que talvez exista uma outra interação que ainda não conhecemos. Mas por enquanto, ainda são hipóteses a serem testadas com mais rigor.

[2]     No  livro A philoshopical essay on probabilities (1814, em francês), Pierre Simon de Laplace, introduz o que atualmente denominamos "Diabo de Laplace", que seria capaz de determinar com precisão o futuro do Universo (caso tivesse acesso a todas as condições iniciais), expressando uma visão determinista do Universo presente na mecânica Newtoniana. Na mecânica quântica, o Demônio da Laplace não conseguiria fazer esta determinação.

[3]  Caso esteja curioso como seria escrito na forma de equação, seria algo como $ \hat Z \Psi_V$ ou $ \hat Z \Psi_A$, onde $\Psi_V$ seria a função de onda da moeda vermelha e $\Psi_A$ a função de onda da moeda azul (cara) ,  No caso da figura 2, seria algo como $\hat Z  \Psi_A \Phi_V  + \Psi_V  \Phi_A$, onde $\Psi_V,\Psi_A$ corresponde a função de onda da primeira moeda e $\Phi_A, \Phi_V$ corresponde a função de onda da segunda moeda.  

[4] Modificada para que tipo de função de onda? Para o que denominamos autofunção do operador que representa a grandeza física, no caso uma função de onda onde "a moeda é cara"  (figura 1a) ou "a moeda é coroa" (figura 2a).

[5] T. Norsen, Einsten's boxex, Am.J.Phys, 73 (20, 164 (2005), que pode ser acessado livremente em https://arxiv.org/abs/quant-ph/0404016 .


janeiro 24, 2022

Estados emaranhados em mecânica quântica

    Atualmente a utilização de estados emaranhados (ou estados entrelaçados) em física, tem trazido contribuições importantes para a compreensão da mecânica quântica, com aplicações em situações que seriam impossíveis  (ou muito ineficientes) sem a utilização destes estados emaranhados. O interessante é que os estados emaranhados   surgiram  inicialmente como uma crítica à mecânica quântica.

    Erwin Schroedinger, um dos autores da moderna mecânica quântica, foi um forte crítico da mecânica quântica, conjuntamente com Einstein! Em um artigo de 1935,   a frase "Podemos elaborar até um caso ridículo." [1] introduz a descrição do extremamente popular experimento do gato vivo-morto de Schroedinger.  É importante ressaltar que Einstein e Schrodinger (e outros críticos) não contestavam os resultados da mecânica quântica (as suas previsões e realizações comprovadas em experimentos), mas  situações que do ponto de vista de fundamentos, não eram bem explicados pela postura ortodoxa da mecânica quântica (ou eram evitados pela postura ortodoxa). Também em  um artigo de  1935 Albert Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen [2],  argumentam que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta, e uma resposta satisfatória para questões apresentadas, só foi possível após três décadas.  Neste texto, não vamos nos ater nas questões trazidas por ambos, de forma que  para quem tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre o assunto, uma recomendação seria o livro [3] ou o artigo [4]. Vamos tratar do que seria o emaranhamento quântico. 


    Para entender o emaranhamento, é importante antes conhecer o chamado Princípio da Superposição, que tem um papel muito importante na mecânica quântica.  Vamos considerar um sistema que possui apenas duas possibilidades de resultados. Você com certeza deve conhecer um bem comum: uma moeda de duas faces.  Neste caso, nosso sistema pode ter dois possíveis resultados "cara" ou "coroa". No caso da física clássica (a física de Newton que aprendemos na escola)  existem apenas estas duas possibilidades.  Dizemos então que nosso sistema pode estar no estado "moeda é cara" ou " moeda é coroa", sendo estados excludentes na física clássica. Ou é um estado ou é o outro.  Mas na mecânica quântica (lembrando que nossa moeda representa um sistema quântico), o Princípio da Superposição nos permite uma outra situação, e nossa moeda pode ser cara E coroa! Você  talvez pergunte, "entào, se eu olhar a moeda vou ver cara E coroa? " . A resposta é um sonoro Não! Ao olhar a moeda, o resultado será  cara ou coroa. Então como sabemos que ocorre esta superposição? Fazendo um experimento SEM medir se é cara ou coroa! Um experimento que muita gente já ouviu falar é o da dupla fenda, que você pode imaginar como um sistema de duas possibilidades: passar por uma fenda ou outra. Neste experimento, SE não determinamos por qual fenda passou o objeto, observamos justamente a superposição de dois estados, que na tela aparece como um padrão que denominado padrão de interferência.  Por outro lado, SE nosso experimento permitir a determinar por qual fenda a partícula passou, deixamos de observar o padrão de interferência.  Independente dos detalhes, a dupla fenda é um entre diversos experimentos que indicam  a validade do Princípio da Superposição.

    Mas vamos retornar para a  nossa moeda, e utilizar a ideia de que a função de onda na mecânica quântica contém todas as informações do sistema. No nosso exemplo, temos duas informações : a moeda é cara, moeda é coroa. Para representar a função de onda, vamos imaginar que a informação "moeda é cara", "moeda é coroa" esteja delimitado por uma caixa como nos desenhos na figura 1 (representamos cara com a cor azul, e coroa com a cor vermelha).  A figura 1a seria então a função de onda com a informação que a moeda é cara, a figura 1b  a função de onda da moeda é coroa e a figura 1c a função de onda com a superposição destas duas possibilidades. O caso do estado de superposição representado na figura 1c, NÃO deve ser visualizado como sendo um estado de duas moedas, mas de apenas uma moeda. Para enfatizar esta situação,  utilizamos o símbolo de soma $+$ e deve ser lido como "nosso sistema foi preparado no estado moeda cara e moeda coroa". Para saber o que contém a caixa, precisamos "abrir a caixa", ou na linguagem da física "efetuar uma medida".  Enquanto não realizarmos a medida (abrir a caixa), não tem sentido (pelo menos para uma visão ortodoxa da mecânica quântica) perguntar se a moeda dentro da caixa  é cara ou coroa. O assunto "efetuar uma medida" em mecânica  quântica é extremamente atual e importante,  um tema que vamos tratar em um outro texto, aqui vamos apenas utilizar a noção mais instrumental, de que medir nos devolve um resultado. 
    
Figura 1. Em (a) a moeda é cara, em (b) moeda é coroa e em (c) a representação do estado de superposição permitido pela mecânica quântica.


    Agora vamos considerar uma situação com duas moedas e imaginar uma construção onde  se a primeira moeda for cara a segunda será coroa e se a primeira moeda for coroa a segunda será cara.  Vamos usar uma convenção de representar a moeda UM SEMPRE  no lado esquerdo da moeda DOIS.  Na nossa construção,  é importante perceber  que se a moeda UM for cara, a moeda DOIS será coroa, e vice-versa. pois nosso sistema é preparado desta forma. Esta relação não tem nada excepcional, e pode ser produzida na física clássica [4]. A figura 2 representa  a nossa função de onda descrevendo estas duas possibilidades (lembrando agora que temos duas moedas), na esquerda temos a representação de uma situação na qual a moeda UM é cara e a moeda DOIS é coroa, e na direita a situação inversa.

Figura 2. Representação de duas possibilidades para o caso de duas moedas.



    
    Mas como na mecânica quântica vale o princípio da superposição linear, devemos levar em consideração a situação onde a moeda um é cara e a moeda dois é coroa E a situação onde a moeda um é coroa e a moeda dois é cara, como representada na figura 3 (novamente atenção , não se engane com a representação na figura, pensando   como sendo 4 moedas, pois são apenas DUAS moedas). Este estado de superposição não ocorre na física clássica.

Figura 3. Uma situação de superposição com duas moedas.



Este estado é o nosso estado emaranhado. Mas antes de continuarmos, é importante ressaltar que nem todos as situações com superposição de duas moedas é um estado emaranhado. Por exemplo, o caso em que a moeda UM é sempre cara e a moeda DOIS pode ser cara ou coroa, está representado na figura 4, e não é um estado emaranhado, mais adiante mostro a razão de não ser considerado emaranhado.


Figura 4. Um exemplo de uma superposição não emaranhado






O estado emaranhado,  descreve uma  situação que não é contemplado pela física clássica, e isto fica bem.ilustrado quando resolvemos verificar se a moeda UM é cara ou coroa. Quando isto é realizado (dizemos que efetuamos uma medida), vamos obter cara ou coroa, mas o que torna o sistema interessante, não é este resultado (moeda UM cara ou coroa), mas o fato de que SE  moeda UM for cara, a moeda DOIS será necessariamente coroa  e vice-versa.  No caso da superposição representado na figura 4, o fato de medirmos a moeda UM e obter o resultado cara, não faz com que a moeda DOIS tenha um resultado definido, continua podendo ser cara ou coroa, mas na situação do estado emaranhado, o resultado da medida na moeda UM é fortemente correlacionado com a  resultado na medida na moeda DOIS. E isto independente das duas moedas estarem perto! Elas podem estar separados por uma grande distância, e mesmo assim o fato de medir a moeda UM, influencia o resultado da medida na moeda DOIS. Esta situação não agradava Einstein (além de outras questões, talvez mais do que esta situação), pois implicava na violação da Teoria da Relatividade, que impõe como limite máximo da velocidade de propagação de informações, e no estado emaranhado a impressão é que a informação do resultado da medida na moeda UM se propaga instantaneamente para a localização da moeda DOIS.   A frase  "ação fantasmagórica" expressa a discordância de Einstein com esta possibilidade. Para contornar esta situação, Einstein argumentava que apesar dos sucessos da mecânica quântica, ela era uma teoria incompleta. E com uma teoria mais geral, estas e outras  inconsistências seriam sanadas. 

Vamos fazer uma breve digressão matemática, bem simples  que espero ajude a clarear um pouco o significado de estado emaranhado.  Para isto, vamos representar a condição "moeda é cara" com a letra $x$ e a condição "moeda é coroa" com a letra $y$. E outra convenção que a moeda UM será representada por uma letra maiúscula sempre na esquerda e a moeda DOIS por uma letra minúscula sempre na direita [6]. Neste caso, representamos "moeda UM é cara" e "moeda DOIS é coroa" como $Xy$ lembrando que   a ordem é importante,  desta forma, $Yx$ representa  "a moeda UM coroa e a moeda DOIS cara", que é diferente da situação $Xy$. Exceto por esta regra, as outras regras que aprendemos na escola, como a distributiva (isto é, $a(x+y)=ax+ay$ ) continuam válidas [6]. Desta forma nosso sistema de duas moedas,  para  o caso emaranhado que apresentamos é representado como $Xy+Yx$.  Além deste estado, vamos considerar  o  caso representado por $Xy+ Xx$, que descreve um sistema com a moeda UM sendo  cara a moeda DOIS sendo coroa E moeda UM sendo cara , moeda DOIS sendo cara e que afirmamos  não ser um estado emaranhado.  Vamos verificar esta afirmação.  Se utilizamos a regra da distributiva podemos escrever  $Xy+Xx=X(y+x)$, e notemos que o termo entre parenteses representa o estado da moeda DOIS, de forma que o estado da moeda UM fica separado do estado da moeda DOIS, ou de  forma pictórica, conseguimos fazer a separação

(estado da moeda UM) (estado da moeda DOIS)

e quando isto é possível de ser realizado, o estado NÃO é emaranhado. No caso $Xy+Yx$  não é possível escrever na forma descrita acima (se você tem familiaridade  para trabalhar com matemática, em [7] indico como demostrar de forma bem simples).

Durante muitos anos, a crítica de Einstein (de que a mecânica quântica não era uma teoria completa) não tinha como ser respondida de maneira mais enfática, com algum tipo de experimento. Mas em 1964, John Bell apresentou o que conhecemos como desigualdade de Bell, que permitiu verificar experimentalmente se a mecânica quântica era uma teoria incompleta. E os resultados indicam que Einstein estava errado em sua crítica. Sobre a existência da ação fantasmagórica , o consenso atual é de que não ocorre transmissão de informações que possam ser utilizadas de maneira útil no emaranhamento que viole o princípio da relatividade. Esta ação "fantasmagórica" é uma característica da mecânica quântica, que não é uma teoria local. 


    E algo que (possivelmente) Einstein não imaginava é que a ideia de estados emaranhados, acabou sendo uma proposta fundamental para entendermos melhor a mecânica quântica, e abrindo novas aplicações para a mecânica quântica. Estudos como criptografia, computação quântica, metrologia quântica utilizam estados emaranhados, e sem esta compreensão destes estados, possivelmente nenhum destes temas teriam se desenvolvido (pelo menos com as características  atuais).

    Uma pergunta interessante é porque foi necessário tantos anos até demonstrar que a ideia de Einstein da mecânica quântica não ser completa não se sustentava? Uma razão sem dúvida alguma foi a necessidade do desenvolvimento de novas técnicas experimentais, mas talvez tenha ajudado os resultados positivos da mecânica quântica, que não dependiam de ser a ideia de Einstein correta ou não. Isto fez com que a ideia expressa na chamada Escola de Copenhagen, (que estabeleceu  por exemplo os princípios básicos da interpretação da função de onda, que utilizamos neste texto), acabasse prevalecendo e discussões que hoje consideramos como fundamentais foram considerados "sem sentido", por não ser possível dar uma reposta experimental (ao artigo do EPR, Niel Bohr apresentou no mesmo ano, um artigo contrapondo a ideia expressa por Einstein e colegas, mas não havia como dizer experimentalmente quem estava correto).  Hoje, graças ao trabalho iniciado por Bell, e ao desenvolvimento da capacidade experimental, a situação é outra. E a discussão de questões dita de "interpretação da mecânica quântica", passaram  a fazer parte das atividades de pesquisa em física. 




[1] O artigo Schroedinger tem uma versão traduzida para o inglês em 1980 por J.D. Trimmer  "The Present Situation in Quantum Mechanics: A Translation of Schrödinger's "Cat Paradox" Paper". Proceedings of the American Philosophical Society124 (5): 323–338. JSTOR 986572

[2] O artigo de Einstein, Rosen e Podolsky pode ser acessado livremente em https://journals.aps.org/pr/abstract/10.1103/PhysRev.47.777 

[3]  T. Norsen, Foundation of Quantum Mechanics, Springer, 2017.

[4] O. Freire Jr. O centenário debate sobre a interpretação e os fundamentos da Física Quântica. Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática, v. 4, n. 3, 2 set. 2021.http://seer.upf.br/index.php/rbecm/article/view/12911/114116177

[5] Um exemplo para quem estudou física newtoniana é a colisão de duas partículas, que quando utilizamos a lei de conservação do momento total, faz com que conhecendo o momento de uma partícula, o  momento da outra partícula fica automaticamente determinada.  Ou o caso de um sistema de duas partículas com energia total conservada. Basta medir a energia de uma das partículas e a outra ja fica determinada.

[6] Esta necessidade de manter a ordem em um produto, pode parecer estranho, mas em situações cotidianas, a ordem de execução é importante. Imaginemos a atividade de "passar sabão em um prato para lavar" e "enxaguar o prato". Se mudarmos a ordem para "enxaguar o prato" e depois "passar sabão no prato", o resultado será diferente do caso anterior!

[7] Vamos assumir que seja possível fazer a separação, de forma que seja possível escrever  $Xy+Yx=(aX+bY)(cx+dy)$, com $a,b,c,d$ números e você não precisa se preocupar com a ordem que aparece . Desenvolva o produto no lado direito da equação, obtendo
$Xy+Yx=(abXx+acXy+ bcYx+bdYy)$ . Como os dois lados tem que ser iguais, devemos ter $ab=0, ac=1, bc=1, bd=0$. Não podemos escolher $a=0$, pois não satisfaz a equação $ac=1$, então devemos escolher $b=0$. Mas esta escolha não satisfaz a condição $bc=1$. Ou seja, nenhuma escolha é possível. Isto implica que a hipótese inicial é falsa.


janeiro 17, 2022

Cristal do tempo

    Para quem acompanha noticiários de ciências e tecnologias, deve ter escutado ou lido o termo "cristal do tempo" em algum noticiário, seja na televisão ou em algum site.    Mas o que seria um cristal do tempo? Alguma pedra com propriedades místicas? Algo para viajar no tempo? Não, nada disso, é um assunto muito interessante e fundamentada em pesquisas bem realizadas, e um assunto que pode gerar uma nova compreensão da física de sistemas com muitos corpos.
    
    Vamos começar fazendo um relato rápido da cronologia  (linha do tempo) da ideia do cristal do tempo. Em 2012    Franz Wilczek (*)   comenta após considerar o papel da quebra de simetria em teorias físicas que  "(...)  é natural levantamos a questão se a simetria de translação temporal pode ser quebrada espontaneamente em um sistema descrito pela mecânica quântica."  E para esta questão, o autor afirma que  sim, e sistemas que apresentam este tipo de comportamento, denominou de cristal do tempo [1].  Após a publicação do artigo, Patrick Bruno apresentou argumentos que invalidavam a ideia do cristal do tempo  em modelos semelhantes ao utilizado por Wilczek. Alguns anos depois Watanabe e Oshikawa, apresentaram uma formulação mais geral do que seria um cristal do tempo, e demostraram que não poderia existir na forma proposta por Wilczek.   Mas a ideia da sua existência  não foi  descartada, e com  modificações  na proposta original,  a ideia do cristal do tempo ganhou um novo fôlego, e passou a ser estudado como um  novo estado da matéria [2].  Após esta bem rápida apresentação histórica, a pergunta é: mas o que é um cristal do tempo?

    Podemos dizer que um cristal do tempo é um sistema que  se repete no tempo. No entanto, esta é uma explicação extremamente simplificada, pois muitas coisas possuem esta propriedade, e são conhecidos muito antes do artigo de  2012  que apresentou o conceito do cristal do tempo.  Um exemplo é um relógio, ou a  sequência dia-noite, e muitos outros que estamos acostumados, e estes casos cotidianos, apesar de serem padrões que repetem no tempo, não são classificados como cristal do tempo. Então, precisamos de mais alguma informação para caracterizar o termo.  Podemos começar com uma definição um pouco mais  precisa, e afirmar que:

        um cristal do tempo é um sistema físico no qual a simetria por translação temporal é espontaneamente quebrada.  

    Mas, exceto para quem estuda física (e mesmo assim, depende da  área de atuação), a frase acima não ajuda muito, e com certeza não é adequada para explicar o que é o cristal do tempo para  não físicos.  Uma definição precisa, apesar de ser importante, nem sempre nos ajuda na compreensão de algo novo. Principalmente se não estamos acostumados com os termos específicos do assunto em estudo.  Então, como um primeiro passo vamos explicar os significados dos termos simetria, translação temporal e espontaneamente quebrada na frase que define o cristal do tempo.

    O termo simetria, para a física está associado a uma propriedade que se mantém  ao realizamos algum tipo particular de transformação (modificação) no sistema em estudo. A existências de simetrias, nos ajuda  a resolver alguns problemas, e explicar muitos fenômenos físicos importantes. Algumas simetrias podem ser visualizadas, em especial as relacionadas com objetos geométricos, outras são mais abstratas e sem possibilidades de visualização.  Vamos considerar um exemplo que podemos visualizar e que está diretamente relacionado com o nosso assunto. Inicialmente, vamos pensar em um sistema que é apenas um  espaço  vazio, e escolher arbitrariamente um ponto neste espaço. Sendo um espaço vazio, qualquer ponto que escolhermos, não vai fazer diferença: o espaço vai ser exatamente o mesmo, quando visto por qualquer um dos pontos no espaço. Podemos nos deslocar do ponto inicial escolhido, para qualquer direção e por qualquer distância, e mesmo assim o espaço vai ser o mesmo. Neste caso dizemos que nosso espaço é invariante por translação espacial (qualquer ponto no espaço é igual). Aqui a transformação é o "deslocar no espaço" e a simetria tem o nome de "invariância por translação espacial". A figura 1 a seguir, ilustra esta invariância por translação espacial, para o caso de um  sistema que é um plano vazio (é importante imaginar que o plano é infinito, sem limites ou bordas).

Figura 1 - Todos os pontos em um plano são iguais.

    O sistema vai ser independente de estar no ponto 1 ou ponto 2 (é sempre bom ressaltar, que devemos imaginar o plano infinito, em todas as direções), isto é,  vai ser o mesmo, continua sendo um sistema vazio.

    Vamos agora imaginar que nosso espaço esteja preenchido com alguns objetos todos iguais (figura 2), e agora nosso sistema  consiste do espaço plano  com alguns objetos . Neste caso, nosso sistema perde a invariância por translação espacial, pois pontos diferentes do espaço, apresentam características diferentes, por exemplo em torno do círculo  com circunferência vermelha tem menos círculos do que em torno do círculo com contorno preto.  

Figura 2- Uma distribuição irregular


    Nosso sistema agora perdeu a sua simetria original, e diferentes pontos do plano, possuem propriedades diferentes. Nosso sistema perdeu a simetria de translação espacial.

        Vamos fazer uma outra modificação, considerar nosso plano ainda preenchido com alguns objetos (todos iguais), mas agora de forma ordenada, como na figura 3 (devemos imaginar infinitos objetos   separados pelas mesmas distâncias dos seus vizinhos, pois na figura eu desenhei apenas alguns objetos). Este sistema  também não tem a mesma invariância por translação espacial da figura 1, mas notemos que é diferente da figura 2.  Como os objetos estão igualmente espaçados (na figura 3, escolhemos um espaçamento igual na horizontal e na vertical , e que representamos pela letra ), ao deslocarmos uma distância na horizontal por d, 2d, 3d ... nada se modifica (e igualmente se deslocarmos por d, 2d, 3d .... na vertical, e também no sentido negativo, isto é, -d,-2d,-3d, ... em qualquer direção). Isto quer dizer que nosso sistema ainda possui invariância por translação espacial, SE, o deslocamento for um múltiplo inteiro de  d (a distância entre os pontos) na horizontal ou na vertical. O que mudou? Na figura 1 a invariância por translação espacial ocorria para deslocamentos de qualquer  tamanho, e dizemos que é invariante por translações espaciais contínuas. Na figura 3, a invariância ocorre apenas para deslocamentos que sejam múltiplos da distância , e dizemos que é invariante por translações espaciais discretas.  Agora podemos apresentar a nossa primeira definição: um cristal é uma estrutura de arranjo de átomos que apresentam simetrias por translação espacial discreta. 

Figura 3. Um arranjo simétrico



    Os cristais apresentam uma repetição da sua estrutura básica, apresentam uma periodicidade espacial (isto é, possuem uma estrutura que se repete no espaço, quando deslocado por uma certa distância - o período. No nosso exemplo acima, o período espacial é a distância d). Um cristal real, não se repete indefinidamente, mas a repetição ou o arranjo ordenado de átomos dentro da sua estrutura é uma das suas características mais importante. Além da simetria simples que apresentamos, existem outros tipos de simetrias para os cristais, mas para o nosso propósito, basta a noção de que um cristal é uma estrutura que se repete periodicamente no espaço. Com isto, dizemos que 

um cristal é um sistema que apresenta simetria por translação espacial discreta. Os objetos, que são átomos, em um cristal, estão regularmente espaçados.  

    A translação temporal, é um deslocamento agora no tempo ao invés de uma deslocamento no espaço. Na física, a simetria por translação temporal tem consequência bem interessantes. Ter simetria por translação temporal, significa que o sistema não modifica com o tempo, e uma consequência importante desta simetria é a conservação de energia. Dizemos que um sistema que possui invariância por translação temporal possui uma grandeza conservada, e esta grandeza é a energia. Um assunto que é interessante a respeito do tempo , é a chamada seta do tempo, isto é, porque o  tempo flui apenas em um sentido. Mas este é um assunto para outro texto. Agora vamos tentar explicar o termo "quebra espontânea de simetria".

    Retornando ao nosso cristal, com átomos  espaçados por uma distância d, vamos considerar dois átomos quaisquer que estejam na rede. Para simplificar vamos considerar que estejam na mesma linha horizontal. Já sabemos que a estrutura se repete a cada translação discreta d.  A distância entre dois átomos será então um múltiplo inteiro de do espaçamento d, digamos 2d (ver figura 4). Agora se deslocarmos cada um dos átomos uma mesma distância R, não vamos alterar a distância entre os dois átomos (ver a figura 4a e a figura 4b, onde deslocamos todos os átomos pela mesma distância horizontal R) .  E isto deve ser válido para quaisquer pares de átomos, mesmo que não estejam na mesma linha horizontal! (Se você já estudou vetores, isto pode ser mostrado de maneira bem simples).


Figura 4. A distância entre dois átomos não varia se todos os átomos forem deslocados pela mesma distância R. Compare a figura (a) com a figura (b).

    E o que tudo isto tem a ver com quebra espontânea de simetria? Vamos considerar que agora nosso sistema físico seja descrito por um modelo teórico onde a interação entre os átomos depende apenas da distância entre elas. Neste caso, se efetuarmos uma transformação onde todos os átomos são deslocados por uma mesma distância, a interação não será alterada (pois não vai mudar a distância entre os átomos). Este modelo não se altera com uma translação espacial contínua, isto é, possui uma simetria de invariância sob translações espaciais contínuas. Mas o cristal não tem a simetria de translação espacial contínua , mas possui a simetria de translação espacial discreta.  Quando isto ocorre - o modelo teórico possui uma simetria, mas o sistema  não possui a mesma simetria -  dizemos que ocorreu uma quebra espontânea de simetria [3]. 

    Agora podemos retornar ao nosso cristal do tempo, e a proposta original de Wilczek, que é importante ressaltar, abordou sistemas no seu estado fundamental, isto é, no estado de mais baixa energia. Estes sistemas, pela própria definição de estado fundamental, não variam com o tempo. Ou dito de outra forma, em qualquer instante do tempo, são iguais, possuindo assim, uma invariância por translação temporal. Wilczek, argumenta que é possível construir um sistema que mesmo  estando no seu estado fundamental, pode apresentar variações que são periódicas no tempo. Ele utiliza no artigo  os mesmos argumento que definem o  processo de quebra espontânea de simetria que forma um cristal, mas agora considerando uma translação no tempo e não no espaço. E para ocorrer esta quebra de simetria, o sistema passaria a ter um movimento eterno, sem dissipação, e como afirma o próprio Wilczek "perigosamente semelhante a um moto perpétuo". Mas como comentado logo no  início deste texto,  foi demonstrado posteriormente que a proposta de cristal de Wilczek, não esta correta, e este perigo de se assemelhar com um moto perpétuo, foi definitivamente descartado.

    O chamado teorema da impossibilidade (no-go theorem), apresentada por Bruno, Watanabe e Oshikawa [2] afirma que   cristais do tempo no estado fundamental (ou em estados de equilibrio) não podem existir, mas não afirma que cristais do tempo não podem existir. Sem a restrição de estar em equilíbrio, e com  uma definição mais precisa de cristal do tempo (com a inclusão de critérios mais elaborados do que a utilizamos no inicio do texto) novas pesquisas começaram a ser realizadas sobre o assunto, considerando o cristal do tempo, como um novo tipo de estado da matéria. E em 2021, menos de 10 anos após a proposta inicial, foi experimentalmente verificado a formação de um cristal do tempo [4,5], e a sua existência deixou de ser apenas uma construção teórica interessante.

    Quais possíveis aplicações do cristal do tempo? Ainda não sabemos,  somente com o tempo (sem a intenção de fazer um trocadilho) poderemos responder melhor sobre esta possibilidade de aplicações.   Mas o estudo de fenômenos de muitos corpos fora do equilíbrio, ganhou um assunto muito especial para ser estudado, e independente de futuras aplicações, vamos entender melhor o nosso Universo.

 

[*]  Franz Wilczek  ganhou o prêmio Nobel de Física em 2004, de acordo com o comitê  Nobel pela  "descoberta da liberdade assintótica na teoria de interação forte" . 

[1] F. Wilczek. Quantum Time Crystal ,Phys.Rev.Lett. 109 (16) 160401, para um versão com acesso  livre , ver em   https://arxiv.org/abs/1202.2539 . No artigo,o trecho que cito aparece como  "Symmetry and its spontaneous breaking is a central theme in modern physics. Perhaps no symmetry is more  fundamental than time-translation symmetry, since time-translation symmetry underlies both the reproducibility of  experience and, within the standard dynamical frame-works, the conservation of energy. So it is natural to consider the question, whether time-translation symmetry  might be spontaneously broken in a closed quantum-mechanical system. That is the question we will consider, and answer affirmatively, here. "

[2] Para quem tiver interesse,  este artigo de revisão  Lingzhen Guo and Pengfei Liang Condensed Matter Physics em Time Crystal,  New J. Phys. 22 075003 , 2020 é de acesso livre em https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1367-2630/ab9d54 ou Krzysztof Sacha and Jakub Zakrzewski, Time Crystal: a review,   Rep. Prog. Phys. 81 016401, 2018, que tem acesso livre em  https://arxiv.org/pdf/1704.03735.pdf , ou V. Khemani , R. Moessner c , S. L. Sondhi , A Brief History of Time Crystals, tem acesso livre https://arxiv.org/abs/1910.10745 .  Os artigos de Bruno , Watanabe e Oshikawa, são  P.Bruno. Impossibility of Spontaneously Rotaing Time Crystal: A no-go theorem. Phys.Rev.Lett,111,070402, 2013; acesso livre em https://arxiv.org/abs/1306.6275 ;  H. Watanabe e M.Oshikawa. Absence of Quantum Time Crystals, Phy.Rev.Lett, v114, 251603, 2015; acesso livre em https://arxiv.org/abs/1410.2143 . 

[3] Existem alguns detalhes que omiti, e com certeza  quem tem formação em física, vai ficar aborrecido com as omissões. Mas, entendo que para os não físicos, os detalhes (que são importantes!), podem acabar causando mais confusões do que esclarecimento.
 

[4] Além do grupo do Google, outros grupos também relataram experimentos que comprovando um comportamento que justifica a existência de um cristal do tempo. No caso da Google, o experimento tem seu mérito por tratar de um sistema maior, e talvez o mais interessante, a utilização da estrutura de um computador quântico a Google havia acabado de construir e testar.

[5] Um fato interessante do modelo que foi testado experimentalmente , é de que no artigo originalmente submetido para a publicação, não havia referência aos cristais do tempo. Mas durante o processo de submissão (em 2015), um dos revisores chamou a atenção dos autores, de que os resultados se encaixavam na descrição de um cristal do tempo. Este relato pode ser lido por exemplo em V. Khemani , R. Moessner c , S. L. Sondhi , A Brief History of Time Crystals, tem acesso livre https://arxiv.org/abs/1910.10745 


janeiro 10, 2022

O Elevador de Einstein em uma garrafa de água

     O elevador de Einstein é uma construção mental extremamente interessante,  e de acordo com o próprio Einstein, foi fundamental para o desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral, e nas palavras de Einstein  foi "o pensamento mais feliz da minha vida " [1].  Ele imaginou a situação  de uma pessoa  caindo do telhado de uma casa e sua percepção dos fenômenos físicos durante a queda. Este experimento mental, expressa um fato observacional importante: a de que todos os corpos caem com a mesma aceleração na presença de um campo gravitacional (devemos considerar uma situação onde o atrito com o ar é desprezível, veja o excelente video do Brian Cox [2], comparando a queda de uma bola de boliche e um conjunto de penas, em um ambiente com atrito reduzido com o ar). Sobre o Elevador de Einstein,  vamos considerar duas situações, que descrevo a seguir.

    Na primeira situação vamos considerar que uma pessoa  aqui na superfície da Terra,  em um laboratório sem absolutamente nenhuma visão para fora. Para manter uma tradição entre os físicos, vamos chamar esta pessoa de Alice. Em seu laboratório, ela realiza diversos experimentos de física, e em um experimento de queda livre de um corpo, mede a  aceleração durante a queda, obtendo o valor igual a $g=9,81 m/s^2$. Alice precisa determinar se  esta aceleração é devido a existência de um campo gravitacional ou é devido a estar em um foguete  acelerado em relação a um referencial inercial.  Mas Alice não consegue decidir fazendo apenas experimentos locais, independente do experimento que realize.

    Agora vamos mudar para uma outra pessoa (e para manter a tradição da física, será  o Bob) em um laboratório igualmente sem visão para fora, mas  localizado distante de qualquer outro objeto, no espaço.  Outra condição é que este laboratório esteja acelerado (é um laboratório foguete, e com os motores ligados), com aceleração igual a g. Neste laboratório, Bob executa diversos experimentos de física, e em experimentos de queda livre observa que todos os objetos possuem uma mesma aceleração igual a $g=9,81m/s^2$.  Bob, como a Alice, precisa determinar se  esta aceleração é devido a existência de um campo gravitacional ou é devido a estar em um foguete  acelerado em relação a um referencial inercial.  Mas Bob não consegue decidir fazendo apenas experimentos locais, independente do experimento que realize.

    Nesta  primeira situação, ambos não conseguem concluir se estão na presença de um campo gravitacional ou no espaço distante, em um foguete acelerado. Nenhum experimento local vai poder dizer se é um caso ou outro.

    Na segunda situação,  o laboratório foguete de Bob, ainda longe de qualquer outro objeto, ficou sem combustível e não está mais acelerado. Nesta situação, o laboratório foguete se comporta como um referencial inercial perfeito: um objeto deixado inicialmente em repouso, continuará em repouso, até que seja aplicado uma força externa.  E agora ao soltar um objeto, ele não cai. Será que Bob pode afirmar com certeza que está em um foguete com motores desligados e longe de qualquer objeto que gere um campo gravitacional? Ou Bob deve afirmar que está em queda livre nas proximidades de um corpo massivo?

    E Alice? Bem, o laboratório dela, que na verdade está dentro de um poço e preso no teto por  cabos de aço, por um infeliz problema, começa a cair do andar que estava (os cabos de aço se romperam). Alice que estava repousando, acorda durante a queda e percebe ao soltar um objeto, que  ele não cai em direção ao chão, como acontecia. Ainda sem saber que o laboratório estava em queda livre, ela conclui que está em um ambiente sem gravidade!  E os objetos que estão parados, continuam parados em seus locais.  Para Alice, ela está em um referencial longe de qualquer outro objeto, em um referencial realmente inercial! (Ela prefere não pensar na situação trágica de seu laboratório estar caindo , pobre Alice)

    Nesta segunda situação, tanto Alice como Bob, concluem estar em um referencial inercial.  E qualquer experimento local que realizem dentro do laboratório, não poderá dizer se o laboratório está em queda livre em um campo gravitacional (Alice) ou no espaço longe de qualquer outro objeto em um foguete não acelerado (Bob).  Nenhum experimento vai poder dizer  se é um caso ou o outro. A única coisa que sabem é que localmente, o seu laboratório é um referencial inercial.  

    Considerando as duas situações apresentadas acima, Einstein considerou importante que ao escrever uma  lei da física, ela não deveria depender do sistema de referencias escolhido. As leis  devem ser as mesmas em qualquer referencial, seja inercial ou não.  Foi a partir desta construção mental,  que permitiu a Einstein começar a elaborar a Teoria Geral da Relatividade. Ele procurou uma forma de obter as equações que descrevem os fenômenos físicos, em uma forma que não dependia do tipo de sistema de referências escolhido, seja um referencial inercial ou não. Quem lembra das aulas de física, ao serem apresentados  às leis de Newton, o inicio deve ter sido algo como "dado um referencial inercial ...". Isto é, um tipo particular de referencial é escolhido. A Teoria da Relatividade Geral, não começa com uma escolha particular de referencial. Ela é escrita de forma a ser válida em qualquer referencial [3].    

    Antes de continuarmos, é preciso fazer uma observação importante, de que  a equivalência exata entre um referencial acelerado e um referencial fixo em um local com campo gravitacional, só ocorre em uma situação muito particular e artificial: um campo gravitacional homogêneo. Mas o que  significa ser homogêneo? Significa que em qualquer ponto que escolhermos, o campo gravitacional deve ser o mesmo, em sentido, direção e módulo (intensidade). No caso da Terra, ou qualquer outro objeto real, isto não ocorre. Mas isto não invalida o experimento mental do elevador de Einstein, pois um termo importante que é utilizado é o termo "experimento local", que significa basicamente "uma região suficientemente pequena" [4].  No exemplo de Alice que está em queda livre, se ela realizar um experimento que compara com muita precisão o campo gravitacional em dois pontos distantes, ela irá notar que existem diferenças e poderá concluir corretamente que está na presença de um campo gravitacional e que ela está em queda livre. Esta ressalva é importante,  pois no caso de Alice em queda livre, o campo gravitacional não sumiu, ela é a responsável pela queda livre. O que ela vai medir é que os objetos não tem peso no seu laboratório em queda livre, que é diferente de afirmar que não existe campo gravitacional. Podemos imaginar que uma terceira pessoa (que vamos chamar de Charles), longe de Alice e Bob, e que  observa ambos, pode dizer que Alice está na presença de um campo gravitacional, e que Bob não está na presença de um campo gravitacional. Isto porque o campo gravitacional  é real, e vai existir independente do tipo de movimento do observador [5]! 

    Mas qual a relação com uma garrafa com água? A relação é um experimento que pode ser feito facilmente (mas prepare uma toalha!) em casa. Pegue uma garrafa plástica , pode ser de 500 ml, 1 litro ou mais. Faça um pequeno furo na lateral inferior da garrafa. Quando enchemos a garrafa com água, o furo vai fazer com que a água saia da garrafa. Por que ela sai? A coluna da água acima do nível do furo, exerce uma pressão, que vai depender da altura do furo até a superfície livre da água. Na superfície da água,  pressão é igual a da pressão atmosférica, que é a mesma do lado de fora do buraco. Mas na parte interna, a pressão é a da pressão atmosférica acrescida da pressão devido à coluna de água, ou seja, ela é maior que a da parte externa. Esta diferença de pressão, faz com que a água saia pelo buraco. (Ah não esqueça de fazer o experimento com a garrafa SEM a tampa, caso contrário, não vai funcionar.) 

    Agora o ponto importante: a pressão da coluna de água, depende da densidade da água, da distância do buraco até a superfície superior da água e da aceleração da gravidade. Então, se fizermos o experimento em um local que não tenha campo gravitacional, não deve sair água pelo furo. Humm, mas como podemos verificar isso?  Será que necessitamos de equipamentos sofisticados para fazer o experimento? Não precisamos de nada sofisticado!  Acabamos de comentar sobre uma situação onde um objeto em queda livre, se comporta como se localmente a aceleração da gravidade fosse nula. Então, esperamos que se soltarmos a garrafa em queda livre,  no referencial da garrafa, a situação seja semelhante ao caso sem a presença da aceleração da gravidade, logo a água não deve sair pelo buraco. Será? O melhor é experimentar!  Faça o experimento em casa, ou veja este  vídeo,  onde Brian Greene demonstra o experimento [6]. Note que inicialmente com a garrafa parada  a água sai pelo furo, e  ao soltar a garrafa, logo no início da queda, a água deixa de sair do furo, como esperado! O que está acontecendo? Cada porção da água, está caindo com a mesma aceleração g, assim como o furo na garrafa (e claro a garrafa também), de forma que em relação ao referencial em queda livre,  a água e o furo, estão caindo junto! A figura 1, são fotos do experimento que fiz em casa. No lado direito é possível ver a água saindo pelo furo, enquanto a garrafa está parada e no lado direito, a garrafa em queda livre e já  não percebemos o jato saindo pelo furo.

Figura 1. O elevador de Einstein em uma garrafa de água.

    Um experimento  simples de fazer, e que demonstra um dos princípios fundamentais  da física moderna! Este princípio recebe o nome de Princípio da Equivalência. Para os físicos existe o Princípio Fraco da Equivalência e o Princípio Forte da Equivalência.  O Princípio Forte estabelece que as leis da física devem ser as mesmas em qualquer referencial, seja inercial ou não. Para quem lembrar das aulas de física na escola, deve lembrar das leis de Newton , válidas em referenciais inerciais. O Princípio forte é uma generalização, incluindo todos os tipos de referenciais. Ah, claro que podemos utilizar as leis de Newton em referenciais não inerciais, mas precisamos tomar alguns cuidados.  Utilizamos referenciais não inerciais  cotidianamente, pois a Terra não é um referencial inercial (ela translada em torno do Sol e ainda tem a rotação diurna), mas dependendo da situação, a Terra é uma aproximação muito boa de um referencial inercial. O que  vai acontecer é que, irão aparecer algumas forças que denominamos inerciais (alguns textos utilizam forças fictícias).  Em situações onde as forças inerciais são muito pequenas, elas podem ser desprezadas e a Terra pode ser considerada como um referencial inercial.  Um exemplo de força  inercial é a força CENTRÍFUGA, que somente aparece em referencias não inerciais. Para uma discussão interessante sobre força centrífuga, recomendo visitar https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=forca-inercial-centrifuga . Aliás, o CREF [7] é um sítio que vale sempre a pena visitar.  

        O Princípio Fraco da Equivalência, estabelece a igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional. Mas  o que seria massa gravitacional??? A massa inercial é aquela que aprendemos nas aulas de física, é a grandeza relacionado com a inércia de um objeto (é comum associar a massa inercial com a medida da quantidade de matéria, mas isto não é muito correto, pois existem situações onde existe algo semelhante a inercia mas não tem matéria!). E a massa gravitacional é uma grandeza física que representa como um objeto responde à presença de um campo gravitacional, e a rigor não é a  mesma coisa que a massa inercial.  A massa inercial aparece quando escrevemos por exemplo a segunda lei de Newton , onde a força resultante é definida como o produto da massa inercial pela aceleração.  A massa gravitacional aparece quando colocamos um objeto em um campo gravitacional. Lembram quando escrevemos a equação do peso, como $ P=mg,$ onde $g$ é a aceleração da gravidade? A massa que aparece na equação é a massa gravitacional e não  a massa inercial. Confuso? Se você lembrar das aulas de eletricidade, deve lembrar da lei de Coulomb. Na presença de um campo elétrico $E$, a força que o campo elétrico exerce em um corpo com carga elétrica $q$, é escrita como $ F= q E$. A carga elétrica é a grandeza que nos diz como o objeto reage na presença de um campo elétrico, e de maneira análoga a massa gravitacional é como o objeto reage  na presença de um campo gravitacional. Seria algo como a "carga gravitacional".  O grande mistério da física é por que a massa inercial é igual à carga gravitacional (ou massa gravitacional). Esta igualdade faz com que a aceleração dos objetos em queda livre, seja sempre a mesma, independente da sua massa inercial!

    O Princípio da Equivalência tem sido testado muito, e até o momento não  existem resultados robustos que mostrem que o Princípio esteja errado. Existem experimentos ou observações realizados com grandes objetos - como as estrelas e buracos negros, galáxias - ou objetos menores como átomos, nêutrons e mesmo neutrinos e o Princípio da Equivalência tem sido comprovado em todos os experimentos e observações. Experimentos recentes realizados no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), indicaram que a matéria e a anti-matéria (no caso prótons e anti-prótons) se comportam da mesma maneira na presença de um campo gravitacional, com um teste extremamente preciso da validade do Princípio Fraco da Equivalência [8]. 

   Existem alguns trabalhos que teoricamente fazem previsão da violação do Princípio Fraco da Equivalência, mas em situações muito extremas e que ainda não temos condições de fazer experimentos para verificar as previsões. Talvez futuramente, possamos determinar com maior precisão SE existem situações em que o Princípio pode ser violado, e fazer testes experimentais para validar as previsões. Por enquanto, desde escalas cosmológicas até escalas dos núcleos atômicos, o Princípio da Equivalência é comprovado com resultados bem robustos. Podemos continuar a brincar com nossa garrafa com água [9].

    Para um texto muito interessante sobre o Princípio da Equivalência, recomendo a leitura do artigo EINSTEIN, A FÍSICA DOS BRINQUEDOS E O PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA [10],  vale a pena a leitura!


[1] Volume 7: The Berlin Years: Writings, 1918-1921. Link em  https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol7-trans/152

[2] https://www.youtube.com/watch?v=E43-CfukEgs (video Brian Cox)

[3] Einstein comenta sobre a preferência da física newtoniana de escolher um referencial inercial, deixando claro que não podemos considerar como uma falha da física newtoniana, mas argumenta que  uma teoria  na qual qualquer referencial seja considerado equivalente, seria epistemologicamente mais satisfatória. O resultado foi a Teoria Geral da Relatividade. Ver em [1], o comentário, que é: "It should by no means be  claimed that the basically unsubstantiated preference of inertial systems over other coordinate systems constitutes an error of classical mechanics. The preference of certain sates of motion (namely, of inertial systems) in nature could be a final fact that we have to accept without being able to explain it (or reduce it to some cause). However, a theory in which all states of motion of coordinate systems are—in principle—equal has to be appreciated from an epistemological point of view as being far more satisfying. For the following consideration we want to use this equivalence as a basis under the name of "general postulate〉 principle of relativity. "

[4] O  termo "pequeno", depende da precisão dos equipamentos de medida que venha a ser utilizado. Mas não vamos nos preocupar com isso no momento.

[5]  Para quem estiver curioso, a maneira de determinar se é um referencial acelerado ou um campo gravitacional, é medindo o chamado desvio geodésico ou o efeito de maré. Esta grandeza está relacionada com a medida do campo gravitacional em dois pontos separados no espaço. Este efeito de maré NÃO pode ser eliminado em um referencial em queda livre ou qualquer outro referencial, pois está relacionando com a existência da curvatura do espaço-tempo. O desvio geodésico está relacionado com uma grandeza que denominamos tensor de curvatura de Riemann, que fornece as  informações sobre a curvatura do espaço-tempo, que é como a gravitação se manifesta de acordo com a Teoria da Relatividade Geral.

[6]https://www.youtube.com/watch?v=0jjFjC30-4A (Entrevista Brian Greene minuto 4:20 )

[7] CREF - Centro de Referência para o Ensino de Física  https://cref.if.ufrgs.br/

[8]  M.J. Borchet et all, , A 16-parts-per-trillion measurement of the antiproton-to-proton charge-mass ratio, Nature, 601,53-57, 2022. https://www.nature.com/articles/s41586-021-04203-w

[9] Existem alguns resultados observacionais que argumentam que são observados violações no Princípio Forte da Equivalência, por exemplo em observações que modelam a dinâmica de galáxias , e que favorecem uma classe de teoria denominada MOND (modelo de gravitação newtoniana modificada), mas são dados que ainda não são considerados consensuais.  E também os modelos MOND não são consensuais. Estes modelos são alternativas para a existência da matéria escura,  mas diversos dados  observacionais em diferentes situações  e modelos  teóricos robustos, favorecem a existência da matéria escura , de forma que MONDs não parece ser modelos corretos.

[10] A. Mederiros, C.F. de Mederiros, Einstein, a Física dos brinquedos e o Princípio da equivalência, Cad.Bras.Ens.Fis, v22 (3), 2005.   https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/6373/5899

 







janeiro 03, 2022

Buracos Negros tem cabelos?

     Buracos negros e cabelos? Buracos Negros  talvez seja  um daqueles objetos da física que já pertencem ao imaginário de muitas pessoas. Um buraco negro na visão simplificada é a de um objeto que tem uma gravidade tão intensa que nem a luz escapa da sua superfície, e que tudo nas  vizinhanças de um buraco negro seriam inexoravelmente capturados, acabando por cair em sua direção. Uma espécie de um super ralo espacial.  Esta visão não está completamente errada, mas  é bem incompleta e imprecisa. Se por algum motivo, nosso Sol for substituído por um buraco negro  com a mesma massa, nosso Sistema Solar  não seria mais iluminado, mas os planetas continuariam sua órbita normalmente, não sendo tragados pelo buraco negro.  Não teríamos um colapso com todos os planetas caindo em direção ao Sol!

    Mas o Sol pode virar  um buraco negro? Não, o seu futuro será a de uma estrela denominada anã branca, com raio da ordem de  7 mil km (o raio atual do Sol é um pouco menos que 700 mil km) e extremamente densa ( cerca 1 milhão de vezes mais densa que a água, isto quer dizer que um volume de 1 litro,  que para a água corresponde a cerca de 1 kilograma de massa, no caso da anã branca  teríamos 1 milhão de kilograma). As anãs brancas são objetos extremamente fascinantes, mas vamos deixar para uma outra ocasião, e retornar para os buracos negros. 

    O que caracteriza um buraco negro, é basicamente  a existência do que denominamos horizonte de eventos.  O horizonte de eventos separa o espaço em duas regiões com características bem especiais. Se algo se aproximar de um buraco negro e ultrapassar o horizonte de eventos,  não poderá mais retornar para fora, isto é, ficará preso dentro da região limitado pelo horizonte de eventos. E não conseguirá nem ficar parado, de forma que uma vez atravessado o horizonte de eventos, irá continuar a cair na direção do centro do buraco negro, em direção da singularidade central (o ponto onde toda massa da estrela ficará concentrada).  E este "algo" que atravessou o horizonte de eventos, pode ser inclusive uma onda eletromagnética, e a luz é uma onda eletromagnética. Assim, uma vez que a luz ultrapasse os limites do horizonte de eventos, não tem como voltar e sair.   Nos sabemos calcular qual o raio do horizonte de eventos, e para o caso de um objeto com a massa do Sol, este raio é da  ordem de 3km (para o caso sem rotação), e quanto maior a massa do objeto, maior será o raio do horizonte de eventos. Para quem tiver interesse, este raio  sendo calculado pela equação

$$  R_S= \frac{2 G M}{c^2} $$

onde   $G= 6,67408 \times 10^{-11} m^3 kg^ {-1} s^{-2}$  é a constante da gravitação universal, M a massa do objeto (no caso do Sol $M=1,989 \times 10^{30} kg$) e c a velocidade da luz no vácuo (valor exato de $299792458 m/s$ ou cerca de 300 mil km/s ).   O raio $R_S$  nos informa qual o tamanho que uma certa massa deve ser comprimida para formar um buraco negro. No caso do Sol, teríamos que  comprimir toda a sua massa em uma região com raio menor que 3 km! 

    O raio acima recebe o nome de raio de Schwarzchild, em homenagem a Karl Schwarzchild que foi a pessoa que obteve a  primeira solução exata da equação de Einstein, da Relatividade Geral. É uma solução que descreve o espaço-tempo de uma distribuição esfericamente simétrica e estática (que não varia no tempo) e foi apresentada no mesmo ano que Einstein publicou a sua teoria (1916). Esta solução descreve um buraco negro estático e esfericamente simétrico. (Na  época não se utilizou o termo buraco negro, que somente se tornaria comum  nos anos de 1950, possivelmente devido a utilização por John  Archibald Wheeler, ver [1] )

    Um buraco negro é assim uma previsão  das equações de Einstein da Relatividade Geral. Por ser uma equação bem complicada, conhecemos poucas soluções exatas (a que fornece o raio de Schrwarzchild  é uma destas soluções) e as mesmas  possuem simetrias muito particulares. Isto fez com que durante muito tempo, a existência de um buraco negro fosse colocado em dúvida, pois os objetos reais, não possuem as simetrias exatas como na solução de Schwarzchild (não são perfeitamente esféricos e nem estáticos). Talvez, pensavam os físicos, em situações reais, um buraco negro não seria formado. Isto até  basicamente o início dos anos de 1960, era o pensamento dominante.  Apesar de que em 1939, Oppenheimer e Snyder, já haviam demonstrado que o colapso de uma estrela, era compatível com a solução de Schwarzchild.  Mas, o que se imaginava  é que com uma descrição mais realista da matéria em colapso (a equação de estado), o processo seria interrompido antes da formação do horizonte de eventos.

    Para termos  uma ideia dos períodos de tempos envolvidos no desenvolvimento do conceito do buraco negro, lembremos que  Einstein apresentou a Teoria da Relatividade em 1916, e a denominada solução de Schwarzchild foi obtida por Karl Schwarzchild no mesmo ano e até o início dos anos de 1960, era a única solução exata conhecida e aplicável a objetos como estrelas. O buraco negro como hoje a conhecemos, não era considerado uma realidade possível, mesmo sendo uma solução correta da Teoria da Relatividade. E não existiam dados observacionais que necessitassem a utilização de uma solução como a de Schwarzchild.

    Mas a situação começa a mudar lentamente, e os  anos de 1960 são considerado como a época de ouro do estudo de buracos negros.  Os importantes  estudos de Roger Penrose e Stephern Hawking sobre os buracos negros, foram realizados neste período. Pelo conjunto destes trabalhos, Penrose recebeu em 2020 o prêmio Nobel de Física "pela descoberta  de que a formação de buracos negros é uma previsão robusta da teoria geral da relatividade", dividindo o prêmio com Reinhard Genzel and Andrea Ghez, que receberam pela descoberta de um buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea.  (Talvez Hawking também receberia o prêmio, mas infelizmente ele faleceu em 2018).  Mas outros trabalhos também foram importantes. Em 1963, o físico Roy Kerr obtém a chamada solução de Kerr, que considera o caso de um objeto em rotação, e esta solução também apresentam um horizonte de eventos (e outras propriedades que a solução de Schwarzchild não possui) e    alguns físicos iniciaram estudos mais detalhados com o que ocorreria com soluções que não tivessem a mesma simetria da solução de Schwarzchild ou de Kerr.  A conclusão foi a de que independente das condições iniciais , a evolução final tendia sempre para a solução de Schwarzchild ou de Kerr, isto é, a solução que descreve um buraco negro [1].  

     No final, os únicos parâmetros importantes são a massa, a carga elétrica e o momento angular (que está associada com a rotação do corpo), e nenhuma outra informação é necessária para descrever o buraco negro formado. Não importava a constituição do objeto, poderia ser por exemplo um objeto composto apenas de átomos de hidrogênio e outro apenas de carbono. Ao virarem um buraco negro, não haveria como dizer qual teve origem no objeto composto apenas de hidrogênio e o outro apenas de carbono ,ou qualquer outra composição, por exemplo um buraco negro formado pelo colapso de uma massa de matéria e outra de antimatéria. ! Esta situação, que não permitia determinar que objeto formou o buraco negro, foi expressa de maneira sintética alguns anos depois  na frase "buracos negros não tem cabelos".    

    Para complementar este período de ouro no estudo de buracos negros, nos anos de 1970, o primeiro objeto astronômico observado foi associado a um buraco negro, o objeto Cygnus X-1, que pertence a um sistema binário, sendo detectado pela primeira vez como uma fonte de raio X.  Assim, os buracos negros deixavam de ser uma especulação teórica, para se tornar um objeto de existência real.

    Mas as surpresas e descobertas com os buracos negros, não estava no fim. Um passo importante foi o estudo de que buracos negros em rotação, poderiam produzir partículas, com trabalhos importantes de um grupo de físicos da então URSS, em especial o grupo liderado por Yakov Borishovich  Zeldovich. Mas a grande surpresa é que, buracos negros sem rotação também poderiam produzir partículas, um resultado que foi obtido em 1974 por S. Hawking  e estes estudos levaram a proposta da chamada termodinâmica de buracos negros, com trabalhos importantes do físico Jacob Bekenstein. Os trabalhos desta área de termodinâmica de buracos negros, tem como um dos principais resultados o processo de evaporação de buracos negros, e associação da entropia com a superfície da horizonte de eventos, e consequentemente a associação de uma temperatura para o buraco negro. E  o mais importante, deu um importante impulso no estudo de fenômenos quânticos em espaços curvos.  Um dos resultados mais surpreendentes,é que quando quando consideramos fenômenos quânticos , um buraco negro pode evaporar, isto é, deixar de existir. Este processo de evaporação, ocorre com a emissão do que denominamos radiação Hawking.  Mas ela só é relevante para buracos negros com massas muito pequenas, muito menores que as massas de estrelas que podem formar buracos negros.

    Os buracos negros, hoje já deixaram de ser objetos apenas teóricos, podendo ser detectados  com frequência. Existem estimativas de que na nossa galaxia, existam entre dezenas de milhões até cerca de bilhões de buracos negros! Entre as observações de buracos negros, talvez uma das  mais espetaculares, tenha sido a da emissão de ondas gravitacionais em 2016, que detectou a colisão de um par de buracos negros. Desde desta primeira detecção, tem sido observados mais eventos comprovando a existência de buracos negros. Os dados obtidos pelos detectores de ondas gravitacionais, são compatíveis com a conjectura de que buracos negros não tem cabelos. Aqui vale um comentário importante, quando dizemos que observamos buracos negros, na verdade  estamos observado os efeitos da sua presença, pois o buraco negro propriamente dito não pode ser observado: ele não emite radiação, pelo menos os com massas típicas de estrelas ou maiores.  No caso da colisão de buracos negros, o que observamos é a emissão de ondas gravitacionais durante o processo de colisão. E dependendo dos objetos envolvidos, as ondas gravitacionais tem características específicas. E estas características que nos permite afirmar que são  buracos negros e não outros objetos.

    No entanto, isto não implica que a conjectura  de que buracos negros não tem cabelos  seja verdadeira.  Existem trabalhos  indicando a possibilidade de que um buraco negro tenha cabelos (o último trabalho publicado de S. Hawking trata deste assunto),  implicando que  buracos negros com diferentes histórias de formação, apresentem propriedades diferentes. A detecção destes detalhes,  talvez possam ser observados como sinais específicos em ondas gravitacionais, mas ainda não com os equipamentos atuais. Pois uma possível violação da conjectura de que buracos negros não tem cabelos, deve ocorrer em uma região do espectro de ondas gravitacionais, que está além das nossas capacidades atuais. O que se espera é que com o aperfeiçoamento dos detectores de ondas gravitacionais, possamos melhorar a precisão nas medidas, chegando na faixa de sensibilidade que permite verificar se buracos negros tem cabelos ou não.  Mas os buracos negros que tem sido estudados que podem violar a conjectura de que buracos negros não tem cabelos, pertencem a uma classe muito específica, por exemplo a dos buracos negros extremos, que são os menores buracos negros possíveis, dado uma certa carga elétrica e momento angular.  O que possivelmente reduz bastante a possibilidade de existirem em abundância no Universo (atualmente não se conhece exemplos de estrelas com carga elétrica diferente de zero). Talvez sejam mais comuns os buracos negros que sejam quase extremos, mas mesmo estes, devem ser bem raros. Outras possibilidades que não incluam buracos negros extremos, também tem sido estudados, mas incluem outras condições  (por exemplo, modelos específicos de matéria escura) que ainda não foram observadas.  Assim, somente com futuros estudos e observações, vamos poder verificar se buracos negros tem cabelos ou não. Por enquanto, os pentes são desnecessários. 

[1] Para quem tiver interesse em ler sobre este período,  uma recomendação é o livro Black Holes and Time Warps, de Kip Stephen Thorne, publicado em 1994. Um livro de leitura muito agradável. Thorne tmabém contribui para o livro Contato de Carl Sagan e no filme Interstellar dirigido por C. Nolan , e em 2017 dividiu o prêmio Nobel de Física  com B.C. Barish e R. Weiss "pelas contribuições decisivas para a (construção) do detector LIGO e a observação de ondas gravitacionais"). Um texto também interessante sobre a história de buracos negros  é The Black hoke fifty yerar after: Genesis of the name  de C.A.R. Herdeiro e J.P.S. Lemos