abril 17, 2025

Um outro demônio na Física


"The greatest trick the devil ever pulled was convincing the world he didn't exist." Charles Baudelaire (ou será do Verbal Kincaid, personagem do filmes Os Suspeitos?)


Figura 1 Italian Devil, Robert Mapplethorpe, 1988



Na física existem alguns demônios bem famosos, como o  Demônio de Maxwell  (ver por exemplo Por que demônio de Maxwell? no site do CREF) e o Demônio da Laplace, e estes dois  são relativamente bem conhecido inclusive por pessoas que não são físicos (principalmente o Demônio de Maxwell). 

O Demônio de Laplace  está relacionado com uma visão mecanicista e determinista da mecânica newtoniana tendo sido apresentado em 1814 por Pierre Simon de Laplace (1749-1827), que em seu livro Essai philosophique sur les probabilités escreveu [1]

 Um intelecto que em um certo momento conhecesse todas as forças que colocam a natureza em movimento, e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se esse intelecto também fosse vasto o suficiente para submeter esses dados à análise, ele abarcaria em uma única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, poderia estar presente diante de seus olhos.  

O  Demônio de Maxwell, seria um ser com capacidade de violar a segunda Lei da Termodinâmica [2] . No livro Theory of Heat  [3] escrito por J.C. Maxwell, é apresentado como

 Mas se concebermos um ser cujas faculdades são tão aguçadas que ele pode seguir cada molécula em seu curso, tal ser, cujos atributos ainda são essencialmente finitos como os nossos, seria capaz de fazer o que é atualmente impossível para nós. Pois vimos que as moléculas em um recipiente cheio de ar a temperatura uniforme estão se movendo com velocidades distintas, embora a velocidade média de qualquer grande número delas, arbitrariamente selecionada, seja quase exatamente uniforme. Agora, suponhamos que tal recipiente seja dividido em duas partes, A e B, por uma divisão na qual há um pequeno orifício, e que um ser, que pode ver as moléculas individuais, abra e feche esse orifício, de modo a permitir que apenas as moléculas mais rápidas passem de A para B, e apenas as mais lentas passem de B para A. Assim, ele aumentará, sem gasto de trabalho, a temperatura de B e diminuirá a de A, em contradição com a segunda lei da termodinâmica.



Mas nem Laplace e nem Maxwell  utilizaram o termo "demônio" em suas construções.  No caso de Maxwell,  o termo "demônio de Maxwell" foi utilizado pela primeira vez por Lord Kelvin em 1874 mas no caso de Laplace   [4] não existem registros de quem foi a primeira pessoa a utilizar o termo. 

Mas existe um outro demônio na física  pouco conhecido (talvez exceto para quem trabalha com matéria condensada): o demônio de Pines, que não é  semelhante aos  demônios de Laplace e Maxwell, no sentido de utilizar um ser hipotético, e principalmente porque foi desde o início denominado  de demônio (demon) por seu proponente.  Foi estudando o comportamento de elétrons dentro de um objeto sólido condutor, que Davi Pines  propôs a existência de um tipo de quase partícula com propriedades bem curiosas. Para esta quase partícula, denominado  plasmon acústico,  Pines propôs  um nome formado com as inicias de três palavras Distinct Eletric Motion e a terminação ON, resultando em DEMON (que em português é DEMÔNIO) no lugar do nome mais técnico plasmon acústico [5].


O que seria o Demônio de Pines? Em um material usual a quantidade de elétrons é extremamente alta, e estudar o seu movimento exige considerar a interação dos  elétrons com os núcleos dos átomos que constituem o material, assim como a interação entre os elétrons do material, o que dificulta bastante as análises. Mas surpreendentemente podemos considerar o  movimento dos elétrons como sendo constituído de elétrons livres.  Isto se torna possível devido a um processo de excitação coletiva, que comporta como uma quase partícula e recebe o nome de PLASMON. Devido as suas características, o plasmon acaba blindando a carga dos íons que formam a estrutura cristalina do material. 

Mas o Demônio de Pines não é um plasmon usual, mas um tipo bem específico de plasmon. Para a existência deste Demônio,   Pines analisou o movimento de dois grupos distintos  de portadores de cargas,  considerando assim um sistema de "dois plasmas" (no original [5] 'We deal then with a "two-plasma" problem.') com massas distintas para os  portadores de cada grupo [6], com movimentos distintos (o que justifica o termo Distinct Eletric Motion ). Nesta situação é possível mostrar que existe um tipo de movimento no qual os plasmons  das particulas mais pesadas e das mais leves estão oscilando  fora de fase, e neste caso  caso surge uma excitação elementar do sistema de "dois plasmas", e  o  Demônio de Pines  é o movimento coletivo desta excitação elementar.

O Demônio de Pines é uma quase partícula que possui algumas propriedades bem peculiares -  não interage com a luz (é invisível), e é eletricamente neutro (não produz corrente elétrica) - mas a sua presença pode influenciar as propriedades de condução nos sólidos.  A sua existência e sua eventual detecção, de acordo com Pines seria um objeto de pesquisa a ser realizado. Desde a sua publicação, algumas variantes do Demônio de Pines foram detectadas, mas não o Demônio de Pines original. Mas em 2023 um grupo de pesquisadores reportou a detecção do Demônio de Pines em um material supercondutor [7]. De acordo com os autores, o Demônio de Pines exige algumas condições para existir, mas que não é extremamente restritivo, de forma que pode  estar presente em muitos outros materiais. O Demônio de Pines tem sido conjecturado como sendo importante para mediar a supercondutividade e física de baixa energia em alguns tipos de metais. Peter Abbamonte, um dos autores do artigo comenta que "Demônios (de Pines)  não são raros", e "que devem existir em muitos outros materiais, e não os detectmos porque não tinhamos o tipo adequado do processo de medida" [8].

    Assim, após mais de 60 anos desde a sua previsão de existência, o Demônio de Pines pode ter sido encontrado. Mas  para os autores do artigo [7] "É necessário uma teoria mais sofisticada dos demônios" e que " uma teoria hidrodinâmica dos demônios, que leve em consideração adequadamente o movimento relativo dos elétrons e buracos em diferentes bandas, pode resultar em novos entendimentos sobre os mecanismos de decaimento dos demônios" [7], de forma que a detecção deve levar a um melhor entendimento da condutividade em certos materiais.


    
 

Notas 

 

[1] No original em francês, o trecho que faz referência o demônio de Laplace é

Nous devons donc envisager l’état présent de l’univers, comme l’effet de son état antérieur, et comme la cause de celui qui va suivre. Une intelligence qui, pour un instant donné, connaîtrait toutes les forces dont la nature est animée, et la situation respective des êtres qui la composent, si d’ailleurs elle était assez vaste pour soumettre ces données à l’analyse, embrasserait dans la même formule les mouvemens des plus grands corps de l’univers et ceux du plus léger atome : rien ne serait incertain pour elle, et l’avenir comme le passé, serait présent à ses yeux. L’esprit humain offre, dans la perfection qu’il a su donner à l’Astronomie, une faible esquisse de cette intelligence. Ses découvertes en Mécanique et en Géométrie, jointes à celle de la pesanteur universelle, l’ont mis à portée de comprendre dans les mêmes expressions analytiques, les états passés et futurs du système du monde. En appliquant la même méthode à quelques autres objets de ses connaissances, il est parvenu à ramener à des lois générales les phénomènes observés, et à prévoir ceux que des circonstances données doivent faire éclore. Tous ces efforts dans la recherche de la vérité, tendent à le rapprocher sans cesse de l’intelligence que nous venons de concevoir, mais dont il restera toujours infiniment éloigné. Cette tendance, propre à l’espèce humaine, est ce qui la rend supérieure aux animaux ; et ses progrès en ce genre, distinguent les nations et les siècles, et font leur véritable gloire.


[2]John Maddox, Maxwell's demon: Slamming the door ,  Nature 417, 903 (2002)


[3] One of the best established facts in thermodynamics is that it is impossible in a system enclosed in an envelope which permits neither change of volume nor passage of heat, and in which both the temperature and the pressure are everywhere the same, to produce any inequality of temperature or of pressure without the expenditure of work. This is the second law of thermodynamics, and it is undoubtedly true as long as we can deal with bodies only in mass, and have no power of perceiving or handling the separate molecules of which they are made up. But if we conceive a being whose faculties are so sharpened that he can follow every molecule in its course, such a being, whose attributes are still as essentially finite as our own, would be able to do what is at present impossible to us. For we have seen that the molecules in a vessel full of air at uniform temperature are moving with velocities by no means uniform, though the mean velocity of any great number of them, arbitrarily selected, is almost exactly uniform. Now let us suppose that such a vessel is divided into two portions, A and B, by a division in which there is a small hole, and that a being, who can see the individual molecules, opens and closes this hole, so as to allow only the swifter molecules to pass from A to B, and only the slower ones to pass from B to A. He will thus, without expenditure of work, raise the ternperature of B and lower that of A, in contradiction to the second law of thermodynamics.

[4] Sobre o Demônio de Laplace o artigo de Boris Kožnjak,  Who let the demon out? Laplace and Boscovich on determinism, Studies in History and Philosophy of Science Part A, Volume 51, 2015, Pages 42-52. 

[5] No artigo ELECTRON INTERACTION IN SOLIDS , Canadian Journal of Physics, Vol. 34No. 12A pp. 1379–1394 , 1956 de David Pines, o autor propõe :
If they are found,  it might be good to have a separate name for this type of elementary excitation, "acoustic plasmon" being a bit awkward. Now such excitations may occur in a classical electron system. I have always thought it too bad that Maxwell lived too early to have a particle or excitation named in his honor.  Therefore I suggest that in honor of Maxwell, and because we deal here with a case of distinct electron motion (or D.E.M.), we call these new excitations "demons".

[6] Apesar dos  portadores de cargas serem elétrons (ou buracos) em ambos os grupos,  as massas efetivas são distintas.  Estas massas efetivas surgem devido ao ambiente na qual os elétrons estão presentes. Dependendo da situação, a massa efetiva pode ser inclusive negativa. 

[7] Husain, A.A., Huang, E.W., Mitrano, M. et al. Pines’ demon observed as a 3D acoustic plasmon in Sr2RuO4. Nature 621, 66–70 (2023). https://doi.org/10.1038/s41586-023-06318-8 

[8]  'Demon' particle found in superconductor could explain how they work,  Alex Wilkins, New Scientist, 9 August 2023, https://www.newscientist.com/article/2386751-demon-particle-found-in-superconductor-could-explain-how-they-work/

 

abril 13, 2025

O átomo de Kelvin

 Nos cursos de física, somos apresentados aos modelos atômicos de J.J. Thomson, E. Rhuterford, N. Bohr e E. Schroedinger e talvez em alguns casos o modelo saturniano de H. Nagaoka [1], mas nada sobre o modelo de vórtex de Kelvin, que tem suporte nos trabalhos desenvolvidos por Herman von Helmoltz em fluídos, de forma que o modelo de atômico de Kelvin seria um modelo contínuo da matéria.

Figura 1. Um vórtex de fumaça, retirado de fonte

    O modelo do vórtex atomico foi apresentado por Wiliam Thomson (Lord Kelvin) em 1867 [2]. Neste artigo, W.Thomson escreve 

Após notar a admirável descoberta de Helmholtz sobre a lei do movimento de vórtex em um líquido perfeito (...)  inevitavelmente sugere a idéia de que os anéis de Helmholtz são os únicos átomos verdadeiros.

fazendo uma crítica da idéia de um átomo rígido e impenetrável (no original "the monstrous assumption of infinitely strong and infinitely rigid pieces of matter"). Neste modelo, os vórtex apesar de fluídos, possuem oscilações e  sua forma de vórtex são mantidos intactos (em um espaço desprovido de processos dissipativos) , mesmo com colisões entre eles. Esta propriedade de colidir  poderia - de acordo com Thomson -  ser explorado no estudo de propriedades termodinâmicas de gases. 

    Uma outra aplicação seria no estudo da espectroscopia, citando em particula o espectro do sódio e de que seja " provável que o átomo de sódio não consista em uma única linha de vórtice; mas pode muito provavelmente consistir em dois anéis de vórtice aproximadamente iguais passando um pelo outro, como dois elos de uma corrente.  (It seems, therefore, probable that the sodium atom may not consist of a single  vortex line; but it may very probably consist of two approximately  equal vortex rings passing through one another, like two links of a chain. ), a figura 2 ilustra esta construção (retirado do artigo Knot Theory's Odd Origins, D. Silver, publicado na American Scientist, janeiro de 2006 que  pode ser acessado aqui ).

Figura 2. Ilustração em  Knot Theory's Odd Origins ilustrando a interação de dois vórtex para explicar a linha dupla do sódio.

    Os diferentes tipos de átomos seriam constituidos destes vórtex com nós. Como os átomos persistem com o tempo, o fluído que formariam os vórtex teria que ser um fluído perfeito,  o que excluia qualquer fluído conhecido. Com o advento do Eletromagnetismo, alguns autores associaram os vórtex com as oscilações ether, que seria o  fluido que permearia todo o Universo. 

    Peter Tait, contemporâneo e amigo de Thomson, inicialmente cético a respeito do modelo de vórtex, dedicou a estudar e tentar construir uma tabela de todos os possíveis tipos de nós,  classificando os diferentes tipos de nós, acreditando que estudando as propriedades desta tabela de nós, poderia obter informações que ajudaria a entender a tabela períodica dos elementos (que foi apresentada pela primeira vez por D. Mendeleev em 1869). O laço sem nó seria o átomo de hidrogênio e os diferentes tipos de nós não equivalentes seriam os outros elementos da tabela periódica.


Figura 3. A tabela de P. Tait fonte


Apesar do entusiasmo de Kelvin e talvez mais de Tati, este modelo acabou sendo rapidamente abandonado,  mas deu origem a uma área importante da matemática, a  Teoria dos Nós.

E nos últimos anos, a ideia de aplicar a teoria dos nós na física retornou, mesmo que seja de forma distinta da imaginada por Kelvin.  Assim, apesar do seu insucesso como modelo atõmico, atualmente  a proposta de utilizar a teoria de nós em sistemas quânticos é uma área bastante promissora  (ver por exemplo o texto sobre o Chip Majorana 1 no blog ou no site do CREF ), de forma que  apesar de tudo a teoria seria uma "Bela Perdedora" [3] !  

Notas

[1] Nagaoka, H. (1904). LV. Kinetics of a system of particles illustrating the line and the band spectrum and the phenomena of radioactivity . The London, Edinburgh, and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science, 7(41), 445–455. https://doi.org/10.1080/14786440409463141 . No excelente  livro Física Moderna - Origens clássicas e fundamentos quânticos de Francisco Oguri eVitor Oguri, LTC, 2ed, 2016, existe um trecho que apresenta brevemente o Modelo de Nagaoka. 

[2]  On Vortex Atoms. Thomson W. 4. Proceedings of the Royal Society of Edinburgh. 6:94-105 (1869). doi:10.1017/S0370164600045430. Uma cópia pode ser acessada aqui .  Este artigo The Vortex Atom: A Victorian Theory of Everything Kragh, Helge . Centaurus 44 (1-2):32-114 (2002) apresenta um panorama histórico do modelo do Vórtex Atômico.

[3 ] Beautiful Losers: Kelvin's Vortex Atoms, Frank Wilczek , 29 de dezembro de  2011